quinta-feira, 31 de março de 2011

Subversivo Bundão

Houve um tempo em que ser comunista era ser cabeça. E, no Recife, galera cabeça podia morar em qualquer lugar, menos em Boa Viagem, bairro chique da zona sul. Lá só moravam os boyzinhos e filhinhos de papai. Nós, que éramos da zona norte da cidade, nos sentíamos superiores em tudo. Afinal, íamos para o teatro, líamos Brecht e Pirandello, discutíamos Nietzche e vomitávamos frases pinçadas de O Capital, do velho Karl Marx. No frigir dos ovos, éramos também boyzinhos, filhinhos de papai. Só que da zona norte, o que nos conferia uma aura de pseudointelectualidade revolucionária. Como éramos bestas!

Estávamos saindo da era da porrada, do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, para entrar na distensão, lenta e gradual, do general-presidente Ernesto Geisel. E bote lenta nisso. O operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog foram duas das mortes que vieram a público nessa época. Lembro que a foto de Geisel nas capas de revista me assustava. 
Médici e Geisel. Só de olhar, dava medo.

Mas eu - ainda bem - nunca cheguei a sofrer nada. Nem um arranhãozinho. O mais próximo que o regime militar chegou de mim foi quando minha irmã mais velha teve que se esconder numa cidadezinha, perto de Garanhuns, chamada Jupi. Toda sexta-feira à noite, eu e meus pais íamos vê-la. Primeiro, saíamos rodando feito peru bêbado, em véspera de Natal*, pelas ruas do Recife, para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Só depois de muito rodar, pegávamos a BR-232, que ainda não era duplicada, em direção a Jupi. Para mim, esse era o momento de maior emoção. Eu tinha apenas 15 anos, mas, como meu pai chegava morto de cansado do trabalho na sexta-feira, a responsabilidade de dirigir o carro na estrada era minha. Eu me sentia O Subversivo. Agora, imagina se tem uma blitz no caminho...

- Habilitação e documento do veículo.

- Tenho, não, seu guarda. O problema é que eu sou de menor e, como meu pai tá muito cansado pra dirigir, sobrou pra mim. A gente tá indo ali, pertinho, ver minha irmã subversiva que tá escondida em Jupi.

Já pensou na merda? Felizmente, essa blitz nunca aconteceu.

Olhava constantemente pelo retrovisor para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Mantinha-me atento, tensão proposital. Sentia como se eu fosse o artista de um filme de suspense. E, de fato, havia razões para essa neura. Um dos amigos de minha irmã, companheiro de lutas estudantis, foi preso e torturado. Conseguiu sair, mas ficou completamente abestalhado. Eu fiquei impressionado com a cara dele e, mais tarde, lendo o livro Brasil Nunca Mais, com o relato de torturas dos presos políticos, consegui entender a dor lancinante que ele teve de suportar. O coitado tinha toda razão de ficar abilolado.
Brasil Nunca Mais: relato de presos políticos que sofreram tortura no regime militar.

Ainda bem que eu não tinha idade para fazer parte da “luta”. Pra você ter uma ideia de como sou frouxo, eu urro de dor quando minha mulher resolve cortar as unhas do meu pé. Assim, tente imaginar o torturador querendo arrancá-las a seco como se conta nos relatos daquela época. Se eu fosse preso, bastaria me ameaçar com um choquinho que eu entregaria o aparelho inteiro, a célula inteira, todos os meus companheiros. No ato! Muito bonito lutar pela causa, mas eu seria um péssimo subversivo. Negócio mais sem graça ficar levando porrada e choque nos ovos.

A verdade, no entanto, é que eu e meus amigos herdamos, da geração imediatamente anterior a nossa, a possibilidade de nos mostrarmos contra o regime militar, sem correr mais tanto perigo de ser preso e torturado. A gente podia ir para os bares de Olinda e ficar cantando “Caminhando e cantando e seguindo a canção...”, “Apesar de Você”, “Cálice” e não sofrer nada. Fazíamos o maior sucesso. Era o máximo da subversão a que nos permitíamos. Eu e meu amigo, Marconi Meira, hoje respeitado cirurgião, éramos figurinhas carimbadas nos bares de Olinda. Chegávamos de violão em punho, começávamos a cantar e logo se formava uma roda em torno da gente. Passávamos aquela imagem de subversivo. Cabelão, barbão, chinelão, mas a verdade nua e crua é que éramos boyzinhos, filhinhos de papai tirando onda de revolucionários. Se alguém ameaçasse dar um choque, a gente entregava até Geraldo Vandré e a mãe dele. Eita que eu era um subversivo bundão! Ainda bem que a redemocratização do país já estava acontecendo.

Muitos anos depois, analisando friamente, será que todas aquelas mortes valeram a pena? Será que, de algum lugar no firmamento, não tem um subversivo morto pensando:

- Caramba, apanhei pra cacete, levei choque, pau-de-arara, dedo no... (não importa) e essa porra não entrou nos eixos?

O Brasil é um país muito doido. A gente ama e odeia, ao mesmo tempo, o tempo todo. Um potencial imenso, mas com muitas deformidades de caráter. A História explica tudo. Laurentino Gomes, no seu livro 1822, relata que Dom Pedro I comprava cavalos comuns, verdadeiros pangarés, e cravava neles a marca da Fazenda Real para vendê-los por valores muito maiores. Se o próprio Imperador fazia isso...


*No passado, quando ainda não havia peru de Natal com termômetro pra avisar que estava pronto, dava-se cachaça ao peru antes de trucidá-lo. Que coisa primitiva.


Impressionantemente, no texto desta semana não tem ficção. Tudo aconteceu de verdade.

7 comentários:

  1. Mainha tem muitas historias pra contar.. quando ela reune os amigos la em casa e cada historia louca.. eu tb seria frouxa... mas tambem nao gosto muito da minha geracao que nao ta nem ai para as questoes politicas do pais, sao poucos!

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  2. Boyzinhos, filhinhos de papai, são denominações que ainda vão perdurar por gerações na sociedade Brasileira. Bom seria se estes se tornassem em cidadãos que contribuem para a redução das diferenças sociais, para a educação e desenvolvimento dos valores da sociedade.
    É esse o caminho da verdadeira "revolução" que a sociedade ainda não venceu.
    É por isso que os subversivos que perderam suas vidas nos tempos da repressão, ainda choram e sentem a dor, não pelos efeitos da tortura.
    Enquanto a sociedade acreditar no "jeitinho brasileiro", na impunidade,nas leis que não pegam, da conivência com a corrupção ativa e passiva, nós não vamos chegar lá

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  3. Amigo fui também um “subversivo bundão” me identifiquei no seu texto. Eu cantava Pra não dizer que não falei de flores e Apesar de você até com um certo medo. Discordo apenas por acreditar que hoje qualquer um pode denunciar os cavalos do Imperador, o mensalão do PT, do PSDB e do DEM sem medo de ser preso, torturado e desaparecido. Liberdade, liberdade abre as asas sobre nós...

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  4. Puro relato de um momento importante do cenário político brasileiro, que também vivi, e que me fez relembrar o quanto eu era um ativista,pacífico claro, só que estava do outro lado da cidade: O lado dos boyzinhos da zona sul. Aproveito esse momento para dizer que aqui por essas bandas, também existiam esses tipos, filhinhos de papai de dia e subversivos autorais a noite. Fiz filmes, inclusive um sobre Wladimir Herzog, onde fui convidado a dar esclarecimentos na Polícia Federal, ganhei aplausos e algumas vaias, e como você Ivanildo, toquei e cantei todas essas músicas listadas nas noites e serenatas. Hoje vejo como foi bom, como foi edificante para mim, ter vivido esse tão esquisito momento político brasileiro.
    Ivanildo, continue com seu Blog, leitura obrigatória!
    abraços,

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  5. titio
    o sangue derramado pelos mártires da ditadura não foi em vão. Se não fosse pela garra deles e tb pela ousadia e coragem dos subversivos que, como nós, fosse cantando, fazendo jornalzinho, fosse reivindicando a liberdade nas salas de aula ou nas ruas, não estaríamos agora vivendo uma democracia que, Se não é ainda a que idealizamos, está bem mais pròxima do que antes. Se
    a luta dos subversivos não teríamos eleito um operàrio para presidente e muito menos uma corajosa guerrilheira para presodenta. Devemos nos orgulhar de termos cantado todas essas músicas. Acredite amigo, precisava ter coragem Para cantá-las em público. Fomos bundões nada. Nós ajudamos a mudar o nosso país. Nós escrevemos a história que está nos livros. E quer saber de uma coisa: conhecendo vc tenho a certeza de jamais entregaria um companheiro. Vc é decente demais pra trair alguém. Imagine se trairia um ideal! Bundão que nada. Somos personagens da història. Um beijo grande.

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  6. Nunca fui subversivo, tinha raiva de comunista e sempre senti um cheiro de pobre com vagabundo nessa gente .Sempre fui play-boy, até hoje com 65 anos.

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  7. Nunca fui subversivo, tinha raiva de comunista e sempre senti um cheiro de pobre com vagabundo nessa gente .Sempre fui play-boy, até hoje com 65 anos.

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