quarta-feira, 25 de abril de 2012


Senhoras distintas

Todos nós ficamos abobalhados com os ídolos. A sensação de encantamento permeia o nosso espírito à mínima possibilidade de estarmos frente a frente com eles.
Eu estava começando a minha carreira profissional, na área de direção de vídeo, quando fui convidado a fazer um “sangue azul” que, explique-se, é um termo usado pela galera de produção para indicar ausência total de verba por parte do cliente. Ou seja, grana zero. O sangue azul em questão era pra gravar um depoimento em favor de um candidato a vereador, o grande comunista Paulo Cavalcanti.  E quem ia gravar o depoimento? Ninguém menos do que Jorge Amado.

Eita pau!

Fui apresentado aos livros de Jorge Amado por minha irmã no início da minha adolescência. Capitães de Areia me prendeu às suas páginas e como foi difícil me despedir ao chegar à última delas. Tantos outros vieram: Mar Morto, Tieta, a trilogia Subterrâneos da Liberdade... Jorge Amado, para mim, não era de carne e osso. E eu ia conhecer a divindade pessoalmente. E mais: ia dirigir Jorge Amado! Início de carreira e eu ia dirigir Jorge Amado. Pra mim, pouco importava se era depoimento para vereador ou sangue azul.

Cheguei mais cedo no local de gravação, a equipe montou os equipamentos, checamos o microfone pelo menos cinco vezes. Tudo pronto para receber a divindade que estava descansando depois de ter enfrentado um voo de Paris a Recife. Em alguns instantes, ele surge na sala. Meu coração acelera. Putz, era a divindade materializada em carne e osso. Ele se dirige às pessoas que estão no set, todas fãs exatamente como eu. E aí ele se dirige a mim.

-       “É aqui que eu vou sentar?”
-       “Isso mesmo, seu Jorge.” Respondo com a voz trêmula.

Aí explico que ele vai ter 50 segundos para falar e que, para auxiliá-lo, eu avisaria quando chegasse aos 30” e aos 40” para, então, ele fazer o arremate. Fiz exatamente como prometi. Só que Jorge Amado ignorou os meus sinais e passou dos 50 segundos, 60, 70, 80, concluindo a sua fala aos 92 segundos. Eu, meio sem jeito, chego junto dele e falo completamente embaraçado.

-       “Seu Jorge, o tempo estourou...”

Ele nem discutiu comigo. Tirou o microfone de lapela, me entregou e disse, bem baianamente: “Depois, você edita aí.” E se levantou.

O que eu ia dizer pra Jorge Amado? Ia dizer que não? Que ele tinha que repetir? Murchei o meu discurso de diretor. Isso é o que acontece quando você está frente a frente com o seu ídolo. Você perde a força e fica incapaz de realizar o seu trabalho de forma competente. Se ele não fosse um ídolo para mim, quando tivesse falado, “depois, você edita aí”, eu teria respondido ”edita aí porra nenhuma, meu velho. Tem que fazer tua fala no tempo”. Agora, imagina você, eu falando nesses termos pra Jorge Amado. É, não dá nem para imaginar. Os ídolos fazem a gente perder a dignidade.

Aí, por falar em perda de dignidade, no fim de semana passado Recife recebeu ídolos de vários públicos. Paul McCartney, ex-Beatle, foi para o Arrudão. Por mais que tivesse vontade de ir, não consegui me ver no estádio do Santa Cruz junto com mais 60 mil pessoas. Tive medo, fui frouxo. Preferi internalizar um comentário ao texto de minha irmã postiça, Fabiana Tavares, da Virtual Produções, em que ela falava, lá no Face: “ok, ok, sou a única pessoa na cidade que NÃO que ir ao show de Paul”. O comentário de Maria Rosa, logo abaixo foi genial: “Se fosse John, eu ia.” Pronto, tomei o comentário de Maria Rosa, que eu nem conheço, para mim. Se fosse John, eu ia. Bela desculpa. Poética até.

Como eu nunca havia assistido a um show de Chico Buarque, foi a minha opção no Recife/Olinda de tantas atrações. Diferentemente do Arrudão, teatro, estacionamento perto da entrada, ar-condicionado, sentadinho na poltrona, pertinho do palco... No foyer do teatro, senhoras carregavam um ar de distinção. Eu não sou fã de Chico Buarque. Eu tenho inveja dele, uma inveja incontida. Quando eu pego o violão e canto algumas de suas canções anasalando a minha voz é uma grande demonstração de inveja. Não tem problema, curto a minha inveja sozinho, já que não toco mais violão na frente de ninguém. Assumi a minha falta de competência musical.

O show começa e, logo na terceira música, aquelas mulheres distintas que eu havia enxergado na entrada do teatro, começam a se desfazer de sua dignidade. E começam a soltar suspiros, a assoviar e, pior, começam a gritar frases que me encheram da tão famosa vergonha alheia.

Maravilhoooooosooooo!, Casa comiiigggoooo, Chiccooooo! Linnnndddooooo! Eu sou tuuuuuaaaaa!

No final do penúltimo bis, sabe como é essa história de bis, né? O artista termina o show com uma música que não empolga ninguém e sai do palco. As luzes da plateia não se acendem. O público fica aplaudindo até o artista voltar. É um joguinho de cena em que todo mundo desempenha o seu papel. Então, no final do penúltimo bis – não sei quantos foram antes – uma mulher despida da distinção que ainda possuía antes do início do show, encerra a música gritando - isso mesmo, gritando -  o último verso:

Futuros amantes, quiçá 

Se amarão sem saber 

Com o amor que eu um dia 

Deixei pra você.

Só que no “deixei pra você”, ela botou o pulmão para fora da boca e não gritou. Ela urrou “deixei pra vocêêêêê”.

Será que eu estava num show de Wando? Não, além de Wando já estar morto, não vi calcinhas sendo atiradas ao palco. Teria sido um show de Fábio Jr.? Não, Fábio Jr. carece de qualidade. Difícil de acreditar, mas era mesmo um show de Chico Buarque. À medida que a senhora distinta urrava, se descabelava em um ataque de histeria, eu continuava quietinho na minha poltrona, morrendo de vergonha alheia.

Vergonha alheia? Hummm, acho que não. Eu tava era morrendo de inveja.