sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Superficial

Chega um tempo na vida em que somos quase, tão somente, reflexões. Constantemente divagamos sobre como seria a nossa vida se, em momentos decisivos, tivéssemos seguido por outro caminho que não o que optamos. É aí onde sempre surge a pergunta:  “será que fiz a escolha certa?” Na maioria das vezes, não há uma resposta, uma escolha certa. Nós vivemos a vida da forma que ela aconteceu. Teríamos sido felizes ou infelizes? Depende da sua própria percepção. Quanto mais complexos somos, mais facilmente nos achamos infelizes. Aliás, isso é parte do pedantismo de nos acharmos mais complexos que o cara do nosso lado. Puro e simples pedantismo.

A verdade é que nós não nos pertecemos. Mas, até que ponto isso é ruim? Se pertencêssemos apenas a nós mesmos, seria, muito provavelmente, a liberdade materializada. Mas, haveria sentido? Para alguns, talvez sim.  Para mim, acho que não.

No sábado, saí para almoçar em família. Meus filhos e suas namoradas, minha filha e minha mulher. De manhã, eu já tinha levado meu filho mais novo no espanhol, passado na padaria, voltado para casa, saído novamente para apanhá-lo no espanhol, voltado pra casa. Pausa. Passar um pouco de tempo, tomar banho, apanhar a namorada do outro filho, ir para o restaurante, almoçar...Você já deve ter cansado do meu sábado que apenas chegou à metade. Um sábado corriqueiro. Um sábado daqueles que as pessoas “mais cabeça” acham simplesmente enfadonho, desinteressante, sem graça, brega mesmo. Mas, se você chegou ao mesmo momento da linha do tempo que eu, em que as reflexões ocupam mais de sua vida, considere a possibilidade contrária. Você poderia simplesmente ter acordado e não ter tido ninguém para levar em canto nenhum. Esqueça a padaria. Esqueça o almoço, os filhos, as noras, a filha e a mulher. Considere a possibilidade de, sozinho, ver o tempo passar,  o dia se esvaindo pela janela. Ou, alguns anos mais pra frente, você acordar e ter a certeza de que ninguém vai mais precisar de você ou, pior, ninguém vai mais passar para ver você. Que o seu telefone não vai tocar. Que não há mais ninguém em sua vida, simplesmente porque você optou por não pertencer a ninguém além de a si próprio. Legal...Você manda na sua vida, ninguém diz o que você deve fazer, você não deve satisfações a ninguém, não tem que ajudar ninguém, não tem que atender telefone de ninguém, não tem que sair com ninguém. É aí que você faz uma daquelas reflexões tão profundas quanto um buraco negro: eu estou só. E, ainda assim, poderá chegar a duas conclusões: 1 - Era exatamente isso que eu sempre quis. Ou, 2 - Fodeu. Estou completamente só. E agora?

Já falei aqui que o tempo tem sido responsável por me tornar superficial. Expulsei Buñuels, Bergmans, Pasolinis e Fellinis da minha vida. Expulsei as leituras pesadas, tratados de sociologia ou economia. Não quero saber de Adam Simth, Samuelson ou Keynes. Freud não me interessa mais. Demoro séculos em livros fáceis. O mais pesado a que eu me permito assistir, hoje, é um Almodovarzinho. Ora, não me deem porrada. Até Woody Allen se superficializou. E, ao se superficializar, tornou-se menos hermético e menos chato. E você, superintelectual, deve estar pensando – “ele considera Allen hermético, hahahaha” Aqui está uma das vantagens da idade – você dá menos importância ao que as pessoas pensam de você. Por que eu tenho que assistir a um filme chato e profundo? Não tenho, mesmo.

Já anseio pelo próximo sábado em que acordarei meu filho às 7 da manhã para levá-lo ao espanhol. Depois vou passar na padaria, voltar, tomar café, apanhar minha filha, voltar, apanhar meu filho no espanhol, o outro filho acordou, levá-lo na casa da namorada, voltar, quem sabe almoçarmos juntos outra vez. À noite, vou esperar, contando os minutos, pelo momento em que todos estarão em casa novamente.

Como eu gosto de ser assim tão superficial.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ela meteu o pau!

Pronto, um textinho sem compromisso.

Tem dois tipos de publicitário: aquele que acha que todos os outros publicitários são fraquinhos demais e aquele que detesta tudo que faz. Eu sou um daqueles que tende sempre a ver defeito em todos os meus próprios trabalhos. Acho sempre que o meu texto poderia ficar melhor, que a edição não ficou legal, que eu poderia ter feito um plano diferente na gravação... Ou seja, eu sou um inseguro incorrigível, ao contrário de um monte de publicitário que conheço. Mas é super normal publicitário ter ego inflado. Essa profissão da gente é muito valorizada. A galera de criação, então, essa se acha mesmo. E aqui vai uma confissão: há momentos em que eu me acho também. Tem hora que eu encarno o espírito.


Uma das vezes em que me achei foi quando a gente fez a ação para a gravação do institucional de fim do ano de 2010 da Globo Nordeste. Uma ação de marketing, na praça de alimentação do Shopping Recife, com cara de flash mob. Eu estava me achando porque a gente conseguiu montar uma superestrutura com 17 câmeras, som ao vivo, cantores, coreografia, uma confusão de mega produção. O sonho de todo diretor. Diretor adora trabalhar com superestrutura. Aquela coisa de "luz, câmera, ação!" bem Hollywood. Mas, pra usar uma expressão bem pernambucana, eu estava "torando o maior aço". Eu tinha assistido a várias ações assim lá no youtube, mas nenhuma envolvia dança e música ao vivo ao mesmo tempo. Não sabia como o público ia reagir, não sabia se o som ia entrar na hora certa, se os cantores iam entrar na hora certa, se as câmeras iam funcionar na hora certa. Apesar de gravado, era uma coisa ao vivo, por mais paradoxal que isso possa parecer. E eu não tenho estômago pra fazer coisa ao vivo. Ao longo de toda minha vida, trabalhei produzindo comerciais. Ou seja, você leva duas horas e meia pra fazer um take e refaz o mesmo take um monte de outras vezes. E, quando o diretor é inseguro... Vixe! Pois é... No flash mob, eu não poderia fazer isso. Eu estava em pânico. E olha que eu tinha, na parte técnica, os melhores profissionais da Globo, comandados por Arísio Coutinho, a galera do Estúdio Fábrica com uma tecnologia de som fantástica, Mariângela Valença cuidando da coreografia, a minha equipe, extremamente competente, inteirinha do meu lado e, mesmo assim, eu continuava "torando aço". Eu sentia o espírito de Celso Coli, diretor regional da Globo, que estava fora do país, com a foice e o manto da morte sobre minha cabeça, caso aquele troço desse errado. Hahuhauhauh. Estou sendo injusto com Celso. Afinal, ele sempre me apoia nessas ações.

Marquei a hora de iniciarmos: 11h30 em ponto. Eu daria o sinal por rádio e celular. Pois não é que o meu relógio quebrou às 11h25. Às 11h30, todo mundo olhando pra mim e eu olhando para o relógio que não chegava às 11h30. E a galera esperando, até que alguém chegou pra mim e disse: Ivanildo, são 11h33, o que você está esperando? Mandei o relógio pro inferno. Aí começou uma tentativa desesperada para mandar o pessoal rodar o playback do áudio. O rádio deu pane, o celular chiava. Ahrhhharrrrrr!!!!!! Mas, finalmente, começou. Surpreendemos todo mundo. As três apresentações foram um sucesso, deu tudo certo, nada falhou. No youtube, recebemos centenas de comentários positivos, alguns emocionados mesmo, especialmente de pernambucanos que estavam fora do país há muito tempo. Outros, naturalmente, meteram o pau. Mas teve um comentário em especial, metendo o pau, que eu adorei, porque, ao ler, eu pude viajar na história da figura que escreveu. Ela conseguiu me transportar para a realidade dela de uma forma que eu me senti presente em cada canto que ela descreveu. A autoria é de uma mulher, como você poderá sentir ao longo do texto. E, sinceramente, acho que ela é redatora publicitária, e das boas. O texto foi, mais ou menos, assim:

"Você leva meia hora pra estacionar seu carro nesse shopping do inferno. Sai de loja em loja pra comprar presente até pra sogra. Volta pelos corredores, cheia de sacola, esbarrando no povo, com um menino chato a lhe aperriar, gritando que quer porque quer um diacho de um McFlurry. Você vai, senta no estabelecimento do palhaço, enche a boca do menino de sorvete e, quando acha que vai ter cinco minutos de sossego, vem este monte de gente cantando musiquinha da Globo. E de sombrinha! É aí que você torce mesmo pela Record..." Exagerada, a moça! Não precisava terminar assim numa situação de desespero.

Meteu o pau no meu trabalho, mas com criatividade maior do que muito publicitário por aí. 

Oxe, Ivanildo, e tu não disse que tu não fala mal dos teus colegas? Sei não, viu!

Se você não assistiu ao vídeo ou quiser revê-lo, acesse o link abaixo.

http://www.youtube.com/watch?v=ZQOU8JSHMBw

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Até um dia

Eu tinha 9 anos de idade e estava, como se dizia antigamente, na 4ª série primária. Naquela época, o ensino de qualidade estava concentrado nas escolas públicas, e eu estudava no Grupo Escolar Martins Júnior, na Torre, um bairro da zona norte do Recife. Com a relativização de tamanho que toda criança faz, eu achava o Grupo Escolar monumental. Hoje, tenho dúvidas se cheguei a conhecer todos os cantos da escola, mas imagino que não fosse tão grande assim. Lembro que havia escadarias que levavam à porta principal e, antes dela, uma sacada grandiosa onde ficavam concentrados os alunos antes do toque para entrar. E era dessa sacada que eu esperava pelo início da minha felicidade diária. Era dessa sacada que eu a via chegar todos os dias. Negros cabelos densos repartidos de lado; maquiagem leve, mas com um batom vermelho vinho, cuidadosamente aplicado, que ressaltava os seus lábios perfeitos; uma elegância que eu distinguia ao longe, mais uma vez, considerando a relativização de tamanhos e distâncias para uma criança. Esse longe era apenas o outro lado da rua. Ela descia do carro e, para mim, naquele exato momento, era como se todas as outras pessoas desaparecessem. Era apenas ela que eu via. Ela era Dona Dulce.
Na minha época de primário, não havia ainda essa história de Tia. Tia só se fosse irmã do meu pai ou da minha mãe. Por mais clichê que seja, Dona Dulce, a minha professora primária, foi, de fato, a primeira paixão da minha vida. Morria de ciúmes do marido dela, o bigodudo que dirigia um fusca vermelho e que a trazia, todos os dias, para ficar a manhã inteira junto de mim. Naturalmente, eu sentava na primeira fila, prestava atenção até na respiração dela, não falava com ninguém...Eu só tinha olhos e ouvidos para Dona Dulce.


Tenho certeza de que foi por conta da minha paixão por Dona Dulce, e exclusivamente por isso, que as minhas notas foram excelentes apenas até a 4ª série. Terminado o primário, fui para uma outra escola e foi quando a minha vida transformou-se numa verdadeira esbórnia, uma zona total. A minha paixão por Dona Dulce passou e era um outro momento, completamente diferente do que eu havia vivido até então. Agora, o meu novo colégio, também público, ficava muito distante de minha casa. Aquele colégio era, sem dúvida, o admirável mundo novo a que Aldous Huxley se referiu em seu livro. Como não havia nenhuma Dona Dulce e, sim, inúmeros outros novos interesses, as notas, naturalmente para o meu desespero, despencaram. Aliás, essa foi uma luta permanente pelo resto da minha tumultuada vida acadêmica. Eu me recusava a estudar o que eu tinha dificuldade para aprender. E resolvia estudar apenas aquilo que me dava prazer. Obviamente, uma fórmula que não funcionou. Nenhum dos professores relegados por mim aceitou ver que eu era genial nas outras matérias...Tá, tá bom. É verdade, você tem razão. “Genial” é propaganda enganosa. Um exagero dos diabos.

Mas por que isso de revisitar a 4ª série primária e a minha paixão por Dona Dulce? Talvez porque tenha sido o primeiro evento de relevância da minha vida que eu me recorde. Não consigo lembrar de nada antes disso. Essa época é como o início da minha linha da vida. É como se todos os acontecimentos que me trouxeram até aqui tivessem começado naquele Grupo Escolar. É uma sensação parecida com a que temos quando começamos uma edição, em que escolhemos as cenas que vão formar o timeline do nosso filme. É exatamente assim que funciona a nossa vida: um linha de tempo de edição. À medida que os eventos vão acontecendo, a gente vai colocando-os nessa linha. Cada período forma um filme. E esses filmes vão ficando para trás, e a gente vai se desapegando de pessoas e coisas que fizeram parte dele. Quantos amigos ficaram pelo caminho? Tantas lágrimas. Tantas dores. Quantos escaparam? Quantos morreram? Nós – eu e você - sobrevivemos. Superamos a dor, nos desgarramos dos momentos tristes e até mesmo dos alegres, nos desgarramos de todas as coisas. Tudo foi ficando para trás, exatamente como na linha de tempo da edição. Fomos construindo novas passagens, criando novas cenas. Talvez seja por isso que, imediatamente antes da morte, nós assistimos ao filme inteiro da nossa vida. Dizem que é exatamente assim, que a vida passa inteira à nossa frente, como se fosse um filme. Se for, é legal. Eu sou cinéfilo mesmo, adoro um cineminha.

Hoje, estou colocando para trás mais um bloco na minha linha de tempo. Foram quase quatro meses contando histórias, rindo ao escrevê-las, organizando palavras que soltas não significariam nada. Foi delicioso dividir minha vida com você, especialmente se isso arrancou um sorriso seu. Estou me desgarrando dos textos, das minhas palavras, estou deixando que eles façam parte do meu passado. Estou partindo e deixando-os partir para, quem sabe, resgatá-los no futuro. Como resgatamos memórias perdidas, como resgatamos amigos, como resgatamos a nossa própria vida. Foi muito bom saber que você me leu ao longo desses quinze textos. Foi melhor ainda experimentar o gosto de contar as histórias que contei. Foi como vivê-las novamente, cada uma delas. Valeu a pena. Obrigado.

“Até um dia
até talvez
até quem sabe…” (João Donato)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Viva a Tecnologia!

Houve uma época em que a tecnologia não jogava a favor dos publicitários. Tudo era feito de forma meio artesanal. Se hoje queremos colocar a chamada num anúncio para jornal, por exemplo, escolhemos a fonte, o tamanho da fonte, crescemos ou diminuímos proporcionalmente, decidimos entre milhares de cores, mexemos pra cá, pra lá...Uma imensa liberdade para, com rapidez, alcançarmos os resultados que desejamos. A tecnologia, hoje, permeia todos os setores do nosso mercado publicitário.

Comecei minha vida publicitária como fotógrafo. Sempre fiquei dividido entre as paixões por fotografar e escrever. Na fotografia, a tecnologia também jogava contra. Basta dizer que não havia Photoshop, a salvação dos fotógrafos e diretores de arte dos dias de hoje. A bem da verdade, a salvação de todos nós. Naquela época, ainda não havia foto digital. A foto tinha que sair boa e tudo era muito caro: o filme era caro, a revelação era cara, era um Deus nos acuda. Para compensar, no entanto, havia o glamour. O laboratório para fotos preto e branco, com aquela luz vermelha, deixava as mulheres apaixonadas. Muitos romances tiveram, como palco, o ambiente de sonho do laboratório. Como nada é perfeito, havia o odor insuportável dos produtos químicos. Mas a paixão dava conta de aliviar o cheiro fétido dos líquidos que deixava todos os laboratoristas com uma tremenda cara de morte, personagens saídos de algum poema de Augusto dos Anjos. Aldemar, que trabalhava comigo, tinha essa cara.

Tinha o profissional que criava, tinha o redator, tinha o cara que fazia o layout e, por fim, o artefinalista, o último ponto de parada antes de o anúncio seguir para a gráfica. Mesmo o anúncio de jornal, que hoje segue tranquilamente pela internet, naqueles tempos, tinha que ser mandado pra gráfica para fazer o fotolito e, só depois, ser levado para o jornal. Os caras que faziam os layouts eram verdadeiros artistas. O que a gente faz hoje, no computador, com referências, os caras faziam na mão, pintando o que vinha na imaginação. O layout era normalmente produzido em tinta guache. Com a chegada da tecnologia, muitas ferramentas foram desaparecendo. Acho que nenhum estudante de publicidade, hoje, sabe o que diabos era uma folha de Letraset. Funcionava assim: para colocar uma chamada, você tinha que aplicar letra por letra, da superfície plástica para o papel. Havia inúmeras fontes e diversos tamanhos. Não sei como conseguíamos tempo para fazer um anúncio.



O fotolito também morreu. As boas gráficas, hoje, já utilizam a tecnologia CTP (Computer to Plate), ou seja, do computador direto para a chapa. Houvesse essa tal tecnologia lá nos idos dos anos 90, eu não teria me metido na enrascada em que me meti.

Criamos um layout para o material de reeleição do deputado Harlan Gadelha. Para economizar papel, a estratégia era fazer de uma maneira em que todos os formatos fossem contemplados: santinho, formato 16, formato 8, formato 4 e formato 2. Quando a gente cria alguma coisa, fica sempre na expectativa do que vai ser o produto final. É sempre assim. A gente fica tenso, achando que esqueceu alguma coisa, que tem uma palavra errada, que isso, que aquilo. Uma verdadeira neura. Fui pessoalmente à gráfica ver o material pronto. Ao ver os impressos, algo muito estranho me bateu. Tomei um cartaz nas mãos. Eu olhava para o cartaz que olhava de volta para mim. Tinha alguma coisa errada e eu não sabia definir o que era. A peça final não tinha a harmonia do layout. Passaram-se alguns segundos – que, para mim, pareceram uma eternidade – quando, num repente, tudo ficou claro na minha mente. A porra da fotografia do deputado tinha sido impressa ao contrário. Por isso a falta de harmonia, por isso aquela coisa estranha, por isso que eu tive aquela sensação, aquela sensação…Aquela sensação de… Fodeu!

Era o material todo de campanha. Na hora de gravar o fotolito na chapa, a gráfica deixou o texto certo, mas inverteu a foto do homem. E agora? O que fazer com aquela montanha de papel? Entregar o material ao comitê do candidato, sem alertar para o erro, nem pensar. Até que chegamos a um consenso. Vamos reunir o candidato com a família, entregar os impressos e dizer que tem um problema com o material. Vamos ver o que eles percebem.

A foto invertida de Harlan Gadelha tirava toda a harmonia do layout


Entreguei o material. A primeira reação de todo mundo: família, candidato, aspones – politico que é político tem aspone – todos acharam ótimo. Os aspones, então, que ficam prestando atenção na reação do chefe e da mulher do chefe, ao perceberem o ar de felicidade, derramaram-se em elogios. É o puxa-saco, o baba-ovo, o xeleléu. Eles não têm opinião própria. Sempre acham o que o chefe acha mais 20%. Se o chefe acha bonito, eles acham lindo. Se o chefe acha ruim, eles acham péssimo. E foi aí que eu entrei com o meu texto:

- Deputado, o material está com um problema.

Silêncio geral. Tensão no ar. O sorriso dos aspones desapareceu. Peço para todos tentarem identificar o problema. Ninguém, literalmente, ninguém aponta o erro na inversão da foto. Todos desistem, pedem para eu revelar o problema, o que faço prontamente. Os aspones esbugalham os olhos em direção primeiramente a mim e depois ao chefe e à mulher do chefe, esperando pela reação do candidato para assumirem a reação mais 20%. Não esqueço jamais de como Harlan assumiu uma postura humana, até humilde, nesse momento, mesmo em condições morais de recusar todo o material.

- Se minha mulher, que dorme e acorda comigo todo dia, não conseguiu perceber é porque o material tá bom demais. Tá aprovado!

Os aspones, naturalmente, gargalharam da piada do chefe e concordaram que o material estava ótimo, que estava maravilhoso, que estava sensacional para começar a ser distribuído. Aspone é uma graça. Foi um sufoco, um dos momentos mais tensos de minha vida profissional. Escapei de ter um dos maiores prejuízos da minha carreira. Hoje, com os mecanismos de controle que existem, é praticamente impossível acontecer um erro assim. Viva a tecnologia!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Adolescente Chato é Pleonasmo

Adolescente é, por natureza, um bicho muito chato. Uns mais, outros menos, mas todos muito chatos. Eu fui um adolescente
muito acima da média. Não acima da média de inteligência. Acima da média de chatice mesmo. Eu fui muito chato e, convenhamos, ainda existe resíduo daquela adolescência em mim. Mesmo meu pai, que era apaixonado pelo único varão da sua prole, chegou a confessar a um amigo sem perceber que eu estava ouvindo:

- Rapaz, eu amo meu filho. Mas o menino é chato. É muito chato. Nunca pensei que eu pudesse ter um filho tão chato assim.

Acho que aquilo me traumatizou e, por pirraça de adolescente, acho que me tornei mais chato ainda. Alem de chato, eu era arrogante. Ainda tem gente que continua me achando chato e arrogante, por mais que eu tente polir a minha imagem. E foi com a chatice e a arrogância da adolescência que, numa segunda-feira, sentei à mesa para tomar café da manhã e minha mãe colocou para mim um prato com um ovo frito. Um único ovo frito. A minha arrogância,  tendo ficado uma noite inteira de sono sem se expressar, irrompeu de forma alucinada:

- Um ovo? É isso que a senhora vai me servir? Um único ovo? Isso mal dá para eu iniciar o meu café da manhã. Onde a senhora está com a cabeça?

Pra começar, é muita ousadia falar assim com a própria mãe. Não se fala assim com a mãe. Ousadia maior ainda era falar assim com a MINHA mãe. Mulher de preceitos morais extremamente rígidos, eu é que não sabia bem onde estava com a cabeça quando proferi aquele texto infeliz. E ainda mais achando que o conceito de Física não se revelaria inteiramente para mim:

Cada ação corresponde a uma reação de mesma intensidade, mesma força, mesma direção e sentido contrário. (Olha aí eu usando as coisas que aprendi no Ensino Médio). Putz, SENTIDO CONTRÁRIO! Foi então que ouvi a voz dela na cozinha, num tom que eu sabia ser de irritação:

- Como é a história, menino? Você está reclamando da vida, mesmo sendo um privilegiado? Mesmo sabendo que existe gente que ficaria feliz de ter a metade de um ovo para comer? Pois, agora, seu danado, você vai comer ovo!

E a minha arrogância falou de novo, mais alto. Devo dizer, sinceramente, que falou contra a minha vontade. Mas a arrogância no adolescente é mais forte do que ele. Tem vontade própria e fala por si só:

- Que bom, pode começar a fazer! E servir! (Não fui eu quem falou isso. Foi a arrogância do meu ser adolescente).

Eu sempre adorei ovos. Fritos, mexidos, cozidos, mal passados, bem passados, de galinha de granja, galinha capoeira, caipira, o escambal. Por outro lado, minha mãe sempre foi uma mulher muito determinada no que ela achava que deveria ser a forma correta de educar os filhos. A rédea era curta, curtíssima. Mas adolescente não se intimida com rédea curta. Não se intimida com nada. Pra segurar adolescente, os pais precisam ter muita... Sei lá, acho que precisam ter é sorte mesmo! Muita!

E minha mãe se danou a fritar ovo pra mim. Os primeiros quatro ovos, eu saboreei com prazer. E aproveitei para soltar uma gracinha:

- Já tem outro pronto?

Isso é o que se chama de “cutucar a fera com vara curta”. Minha irmã mais velha, que também estava sentada à mesa, me olhou com repreensão, como se me perguntasse se eu havia enlouquecido. O sangue de minha mãe, nesse momento, deve ter fervido. Ela sequer respondeu. Começou a me servir os ovos cada vez mais mal passados. Ali, pelo décimo ovo, a garganta começou a travar. E como eram férias, desesperado, pensei:

- Cadê meu pai para me salvar?

Pois é... Meu pai já havia saído para o trabalho. Eram férias escolares. Eu estava ferrado. Entregue à própria sorte e arrogância. Décimo-segundo ovo...Agora eu já não os mastigava. Procurava engolir como pílula para não sentir o gosto. Eles vinham da cozinha quase crus de tão mal passados que estavam. Décimo-terceiro, décimo-quarto...Comecei a engulhar. Já estava quase me preparando para sucumbir e pedir desculpas. Décimo-quinto, décimo-sexto...Não aguentava mais ver aquela forma redonda, branca e amarela, à minha frente. Décimo-sétimo...Estava tonto. Tinha a certeza de que jamais voltaria a ingerir um único ovo em minha vida, mas adolescente arrogante - e imbecil – fazia todo o esforço do mundo para levar adiante o meu intento de vencer a batalha contra minha mãe. Afinal, alguma hora os ovos acabariam. Para sorte minha, no entanto, ela estava se preparando para quebrar o décimo-oitavo ovo quando minha irmã mais velha levantou-se da mesa e, em prantos, implorou para ela parar:

- Pare, minha mãe! A senhora vai matar este menino e vai sofrer. Ele não merece que a senhora sofra. Pare, por favor!

Eu, tenso na mesa, torcendo para ela dar ouvidos à minha irmã. Ficava pensando comigo:

- Puta que o pariu, puta que o pariu três vezes! Puta que o pariu, como eu fui imbecil.

As duas se abraçaram e eu, sem merecer, reconheço hoje, fui salvo na hora "j" por minha irmã. Dezessete ovos. Por incrível que pareça, continuo adorando ovos. E agradecendo todos os dias por meus filhos não serem nadinha parecidos comigo. Nem arrogantes, nem imbecis. Mas adolescentes, todos eles foram chatos.

Se você tiver uma história de chatice de adolescente, divida comigo nos comentários do blog.

Boa Páscoa a todos. Que Juan Della Costa volte de Madri e encontre o Recife ainda em terra firme, antes de submergir.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O Sósia

Em toda campanha política, existe uma rivalidade muito grande entre as equipes que preparam os programas para a TV. Os programas são decisivos na escolha do voto pelo eleitor.

Em 2004, eu estava em Petrolina, PE, dirigindo os programas eleitorais do prefeito, candidato à reeleição, Fernando Bezerra Coelho. Fernando tinha sido prefeito de Petrolina de 92 a 95, depois se elegeu em 2000 e, tendo passado quatro anos, era mais uma vez candidato. O período de 2000 a 2003 havia sido difícil. A crise mundial tinha afetado o Brasil, reduzido a capacidade de investimento de estados e municípios e atingido as pessoas em cheio nos bolsos. Era natural que houvesse uma insatisfação. James Carville, estrategista da vitória de Bill Clinton sobre George Bush Pai, em 1992, decifrou o enigma ao criar o slogan de campanha “It’s the economy, stupid!” Ou seja, se a economia está bem, todo mundo está feliz. Não era essa a situação naquela campanha para prefeito de Petrolina.

O opositor de Fernando Bezerra era o deputado Gonzaga Patriota. Pelas pesquisas, o deputado já estava eleito porque a diferença era muito grande. Essa era a leitura da equipe do lado de lá. Por conta disso, a gente passou a campanha praticamente inteira ouvindo gozação da equipe que fazia os programas para o adversário. Quando encontrava o nosso pessoal, tinha sempre uma gracinha na ponta da língua:

- E aí? Como é trabalhar sabendo que vai perder?
- O ambiente lá ta muito triste?
- Vocês querem ajudar a gente na festa da vitória?

E assim foi durante quase os três meses de batalha. Até que o trabalho que a gente desenvolveu, mais o desempenho de Fernando, mais a incompetência do lado de lá, tudo isso foi se traduzindo numa mudança dos números. Todos os dias Fernando Bezerra Coelho crescia e Gonzaga Patriota perdia votos. Cada estratégia que acertávamos fazia ele perder votos em uma determinada faixa de eleitores. Se ele estava forte entre os jovens, criávamos peças e estabelecíamos estratégias de mídia que impactassem os jovens. E batíamos. Aliás, essa coisa de que em campanha política não se bate no adversário é lenda. O eleitor não quer saber de bate-boca gratuito, mas se há uma denúncia, se há uma acusação séria, devidamente documentada, não tem essa de que não se bate. Bate mesmo. As campanhas políticas americanas, funcionando numa democracia que vem desde 1776, têm inúmeros exemplos de peças batendo no adversário. Você pode assistir a comerciais de campanhas políticas presidenciais americanas no link www.livingroomcandidate.org

Mas, voltando a Petrolina... À medida que o candidato do lado de lá caía cada vez mais, sintomaticamente as gozações com a nossa equipe diminuíam. O terror da derrota começava a tomar o lugar da euforia precipitada. Até porque não dá pra saber com absoluta certeza, com três meses de antecedência, como o eleitor vai se comportar. Desculpem a maldade, mas era delicioso sentir o desespero do lado de lá. Em Petrolina, campanha política é como guerra de torcidas, com a diferença de que é tudo na paz. Muita gozação de parte a parte. Uma festa para a militância. O último debate é como final de jogo do Brasil em Copa do Mundo: alcança 90 pontos no IBOPE. Todo mundo fica em frente à TV para assistir. Inegavelmente, uma bela festa proporcionada pela democracia. 

Faltando uma semana para o último programa, tínhamos pesquisas seguras de que havíamos virado o jogo. Era hora de criar uma peça para atrair os indecisos que só precisavam de um tiquinho de força para vir para o nosso lado e definir de vez a nossa vitória. Estou eu na ilha de edição, quando entra Kleiton Barbosa, meu fiel produtor em todas as campanhas, para me dizer que o deputado Gonzaga Patriota estava esperando na recepção, querendo falar comigo. 

- É o quê, rapaz?!!!!

Desci para ver o que ele queria. Tomei um susto. Lá estava o deputado, paletó, gravata e a sua barba. Fiquei tentando imaginar o que o cara podia querer comigo. Será que ele ia pedir para eu aliviar? Tomar satisfações? Fazer um acordo? Cheguei bem perto, me dirigi a ele.

- Boa tarde, deputado. Posso ajudar em alguma coisa?

Foi só então que eu percebi que o cara era um sósia do deputado Gonzaga Patriota. Nem irmão gêmeo era tão parecido. A militância descobriu esse cara, meteu um terno nele e o levou ao comitê central de campanha onde produzíamos os programas. 

O sósia segurando o coração e o deputado Gonzaga Patriota 

Estávamos trabalhando naquela peça de trazer os indecisos para o nosso lado. Eu tinha resolvido fazer um sambão "Vem pro lado de cá". A ideia era pegar figuras bem conhecidas da cidade, eleitores dos nossos adversários, e colocá-los na frente da câmera fazendo o gesto de chamar o telespectador para o lado de cá. E aí, leitor, desculpe a maldade mais uma vez: resolvi usar o sósia com um coraçãozinho na mão onde tinha o número 23 de Fernando. Um segundo de gozação como vingança pelos três meses que os caras escracharam com a gente. Nada político, apenas uma brincadeira com os profissionais da equipe do lado de lá. Puro prazer. Pura diversão.

Moral da história: antes de tirar sarro da cara do seu adversário, tenha a certeza de que ele está morto. Caso contrário, ele pode se levantar e matar você... De vergonha!

O clip foi produzido sete anos atrás. Quem já viu, vale relembrar.











quinta-feira, 7 de abril de 2011

A gente faz, visse?

Tenho pavor de fazer qualquer coisa ao vivo. Especialmente quando é um evento único, em que o tempo não ajudou a criar um padrão para a sua execução. O jornal de uma emissora de TV vai todos os dias ao ar e, não raro, acontecem falhas. Algumas imperceptíveis ao telespectador. Outras que literalmente fazem a equipe chegar perto de um infarto. Eu, realmente, não tenho sangue frio para essas coisas ao vivo. Mas, vez por outra, aparece alguma história em que termino me metendo, arrumando sarna pra me coçar:

- A gente podia entrar com esta ação ao vivo no jornalismo, não é?

Eu não tenho nada que me meter nessas frias. A minha adrenalina vai lá pra cima, fico num estado de tensão alucinado, mas não deixo de fazer.

Uma dessas situações foi a inauguração do sinal digital da Rede Globo Nordeste no Recife. Autoridades e o mercado publicitário em peso foram convidados para o coquetel de lançamento e o acendimento das luzes da antena. O evento foi no Barrozo, uma casa de recepções na Rua da Aurora, pertinho da antena. O local foi aprovado por Celso Coli, diretor regional da emissora, exatamente por conta da vista privilegiada. Chegamos a ver outros locais, mas o Barrozo, sem dúvida, era o ideal para o que queríamos fazer.

A vista perfeita que se tem da antena da Globo Nordeste
a partir do pátio interno do Barrozo.

Foi então que, conversando com Aldenor Silva, a minha vontade de procurar sarna pra me coçar bateu forte. Falei pra ele:

- E se a gente colocasse as luzes pra dançar?

Aldenor coordena o departamento de TI da Globo Nordeste. É um cara que não rejeita nenhum desafio. Competente demais, o baixinho. Pois, então, Aldenor me explicou que a iluminação à base de LED, em tese, permitia qualquer combinação de cores, mas que marcaria uma reunião com o representante da Philips para eu expor a ideia da gente.

Desde sempre, sou fascinado por cinema. E, entre Capra, Buñuel, Fellini, Pasolini, Bergman, tem também Spielberg, que é um mestre no cinema de diversão. “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” fala de relações humanas e da visita de seres de outras galáxias à Terra. (Não, eu não acredito em OVNI, nem em abdução.) O que sempre me chamou a atenção nesse filme foi o estabelecimento de uma relação entre música e sinais visuais coloridos como forma de comunicação entre terráqueos e alienígenas.  E, no caso da antena, como eu tinha todas as cores à minha disposição, só precisava acrescentar música.



Chamei Bequinho, o nosso maestro, para mostrar a ele algumas cenas de “Contatos Imediatos”. Que essa era a linha de inspiração que tinha me ocorrido para a dança de luzes da antena, mas que era fundamental terminarmos com um acorde do Hino de Pernambuco para dar o nosso toque de orgulho bairrista. Beco fez uma trilha maravilhosa e, aí, sentamos todos juntos: eu, Aldenor, Bequinho e Eduardo Nóbrega, pupilo de Aldenor e fera em tudo que diz respeito a informática. Pegamos a trilha e fomos para a antena na Rua da Aurora. E começamos a fazer experimentos baseados nos quadrantes da antena. Depois de conseguirmos montar 2 segundos, eu vi que jamais terminaríamos a montagem antes da inauguração, além do risco de torcicolo de tanto ficar olhando pra cima. Precisávamos de uma coisa que fosse mais século XXI e não pré-histórico, que era como estávamos trabalhando. 

O representante da Philips não tinha a menor ideia de como resolver, já que São Paulo, Rio e Belo Horizonte não fizeram nada parecido com o que a gente queria. E quando você quer fazer alguma coisa diferente do padrão, sempre tem alguém para dizer que não vai dar certo, que é difícil, perigoso, que pode explodir... É aí que, às vezes, só de pirraça, você pensa:

- Pois é agora que eu vou fazer essa porra!

Eduardo conseguiu um programa que reproduzia a antena graficamente com absoluta precisão. Sentamos na sala de projeção, e eu ia pedindo o conjunto de luzes de acordo com o que eu queria para o acorde musical. Foi uma sensação indescritível ver a animação ao som da música ainda na tela. Uma viagem. Mexíamos nas cores, no tempo de cada conjunto de luzes, mudávamos de ideia, voltávamos. E, a cada sequência, uma vibração. Crianças com um super brinquedo nas mãos. Nós, homens, somos um bicho muito besta. A personificação da leseira. Agora eu estava louco para ver a coisa funcionar de verdade com as luzes da antena. Na vera!

Estávamos a 24 horas da inauguração. Alguns alienígenas de outros estados, convidados para a festa, estavam conhecendo a antena quando demos início ao ensaio. Foi aí que eu ouvi um sotaque que não era de Pernambuco, que não era do Nordeste.

- Pareeaece que elessss esssstão quereeendo sincronizaaar música com as luzessss, mas elesssss devem teeeerrrr um plano bêaê, porque acho muito djjifícil que iêsso funcioooone. (Essa é apenas uma tentativa de reproduzir o sotaque do alienígena)

Vixe, como nordestino é desacreditado. Os alienígenas foram embora, acreditando que não conseguiríamos. Acertamos a sincronização lá pela sétima tentativa. E, depois disso, executamos mais 65 vezes para nada dar errado. É, eu reconheço: eu sou neurótico. Ninguém aguentava mais a trilha. E eu pedindo mais uma vez, mais uma vez. 

Na festa, na noite seguinte, tudo funcionou perfeitamente.  Depois, já relaxado, me aproximei do alienígena que tinha duvidado da capacidade da gente na noite anterior e falei, carregando despudoradamente no sotaque nordestino. Fiz uma salada de sotaques tentando representar os nove estados.

- Ô, bichinho, tu visse como funcionou tudo direitin? Pense nuns cabras competente da moléstia dos cachorro que a gente tem aqui. Se vosmicê quiser, a gente faz um show igualzinho pra vocês lá no seu estado, visse?

O cara me olhou desconfiado, sorriu amarelo, entendeu o recado e deve ter pensado alguma coisa muito impublicável de mim. E, na mesma hora, eu falei pra ele:

- Num duvide, não, que a gente faz!

Você pode assistir ao filme aqui, mas não é nada semelhante à sensação de ter visto a apresentação no local, pertinho da antena. 


quinta-feira, 31 de março de 2011

Subversivo Bundão

Houve um tempo em que ser comunista era ser cabeça. E, no Recife, galera cabeça podia morar em qualquer lugar, menos em Boa Viagem, bairro chique da zona sul. Lá só moravam os boyzinhos e filhinhos de papai. Nós, que éramos da zona norte da cidade, nos sentíamos superiores em tudo. Afinal, íamos para o teatro, líamos Brecht e Pirandello, discutíamos Nietzche e vomitávamos frases pinçadas de O Capital, do velho Karl Marx. No frigir dos ovos, éramos também boyzinhos, filhinhos de papai. Só que da zona norte, o que nos conferia uma aura de pseudointelectualidade revolucionária. Como éramos bestas!

Estávamos saindo da era da porrada, do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, para entrar na distensão, lenta e gradual, do general-presidente Ernesto Geisel. E bote lenta nisso. O operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog foram duas das mortes que vieram a público nessa época. Lembro que a foto de Geisel nas capas de revista me assustava. 
Médici e Geisel. Só de olhar, dava medo.

Mas eu - ainda bem - nunca cheguei a sofrer nada. Nem um arranhãozinho. O mais próximo que o regime militar chegou de mim foi quando minha irmã mais velha teve que se esconder numa cidadezinha, perto de Garanhuns, chamada Jupi. Toda sexta-feira à noite, eu e meus pais íamos vê-la. Primeiro, saíamos rodando feito peru bêbado, em véspera de Natal*, pelas ruas do Recife, para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Só depois de muito rodar, pegávamos a BR-232, que ainda não era duplicada, em direção a Jupi. Para mim, esse era o momento de maior emoção. Eu tinha apenas 15 anos, mas, como meu pai chegava morto de cansado do trabalho na sexta-feira, a responsabilidade de dirigir o carro na estrada era minha. Eu me sentia O Subversivo. Agora, imagina se tem uma blitz no caminho...

- Habilitação e documento do veículo.

- Tenho, não, seu guarda. O problema é que eu sou de menor e, como meu pai tá muito cansado pra dirigir, sobrou pra mim. A gente tá indo ali, pertinho, ver minha irmã subversiva que tá escondida em Jupi.

Já pensou na merda? Felizmente, essa blitz nunca aconteceu.

Olhava constantemente pelo retrovisor para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Mantinha-me atento, tensão proposital. Sentia como se eu fosse o artista de um filme de suspense. E, de fato, havia razões para essa neura. Um dos amigos de minha irmã, companheiro de lutas estudantis, foi preso e torturado. Conseguiu sair, mas ficou completamente abestalhado. Eu fiquei impressionado com a cara dele e, mais tarde, lendo o livro Brasil Nunca Mais, com o relato de torturas dos presos políticos, consegui entender a dor lancinante que ele teve de suportar. O coitado tinha toda razão de ficar abilolado.
Brasil Nunca Mais: relato de presos políticos que sofreram tortura no regime militar.

Ainda bem que eu não tinha idade para fazer parte da “luta”. Pra você ter uma ideia de como sou frouxo, eu urro de dor quando minha mulher resolve cortar as unhas do meu pé. Assim, tente imaginar o torturador querendo arrancá-las a seco como se conta nos relatos daquela época. Se eu fosse preso, bastaria me ameaçar com um choquinho que eu entregaria o aparelho inteiro, a célula inteira, todos os meus companheiros. No ato! Muito bonito lutar pela causa, mas eu seria um péssimo subversivo. Negócio mais sem graça ficar levando porrada e choque nos ovos.

A verdade, no entanto, é que eu e meus amigos herdamos, da geração imediatamente anterior a nossa, a possibilidade de nos mostrarmos contra o regime militar, sem correr mais tanto perigo de ser preso e torturado. A gente podia ir para os bares de Olinda e ficar cantando “Caminhando e cantando e seguindo a canção...”, “Apesar de Você”, “Cálice” e não sofrer nada. Fazíamos o maior sucesso. Era o máximo da subversão a que nos permitíamos. Eu e meu amigo, Marconi Meira, hoje respeitado cirurgião, éramos figurinhas carimbadas nos bares de Olinda. Chegávamos de violão em punho, começávamos a cantar e logo se formava uma roda em torno da gente. Passávamos aquela imagem de subversivo. Cabelão, barbão, chinelão, mas a verdade nua e crua é que éramos boyzinhos, filhinhos de papai tirando onda de revolucionários. Se alguém ameaçasse dar um choque, a gente entregava até Geraldo Vandré e a mãe dele. Eita que eu era um subversivo bundão! Ainda bem que a redemocratização do país já estava acontecendo.

Muitos anos depois, analisando friamente, será que todas aquelas mortes valeram a pena? Será que, de algum lugar no firmamento, não tem um subversivo morto pensando:

- Caramba, apanhei pra cacete, levei choque, pau-de-arara, dedo no... (não importa) e essa porra não entrou nos eixos?

O Brasil é um país muito doido. A gente ama e odeia, ao mesmo tempo, o tempo todo. Um potencial imenso, mas com muitas deformidades de caráter. A História explica tudo. Laurentino Gomes, no seu livro 1822, relata que Dom Pedro I comprava cavalos comuns, verdadeiros pangarés, e cravava neles a marca da Fazenda Real para vendê-los por valores muito maiores. Se o próprio Imperador fazia isso...


*No passado, quando ainda não havia peru de Natal com termômetro pra avisar que estava pronto, dava-se cachaça ao peru antes de trucidá-lo. Que coisa primitiva.


Impressionantemente, no texto desta semana não tem ficção. Tudo aconteceu de verdade.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A Blitz me pegou!

É muito provável que você, que está me lendo agora, já tenha sido parado por uma blitz. Aliás, a origem dessa palavra é esclarecedora e temerosa. Ela vem de Blitzkrieg, uma doutrina militar nazista. Dando um “copy/paste” na Wikipedia, historicamente, “seus três elementos essenciais se baseavam no efeito surpresa, na rapidez da manobra e na brutalidade do ataque, e seus objetivos principais eram a desmoralização do inimigo e a desorganização de suas forças.” Continua da mesma forma. É exatamente assim que você se sente ao ser parado por uma das blitze da polícia nas ruas. Desmoralizado e brutalizado. Na mesma hora você se pergunta: será que eles acham que eu sou bandido? Que nada, eles sabem que você não é bandido. Aliás, umas das coisas que blitze (o plural é assim, feio mesmo: blitze) não param é bandido. Porque o bandido sempre sabe onde está a blitz. Tente, você, encontrar alguma estatística sobre a prisão de bandidos em blitz de trânsito. Hahahahaha.

Eu tenho uma relação intensa com as blitze. Existe uma forte atração entre nós. Se tem blitz, eu sei que vou ser parado. Ela olha pra mim, eu olho pra ela e lá vamos nós, repetir o roteiro sempre igual. O que me chateia é que não sei a razão de a blitz estar sempre no mesmo lugar. Eu já fui parado na mesma rua, no mesmo quarteirão, diversas vezes. É aquela atração, sabe?

Uma dessas, em que fui parado, era uma blitz de trânsito. O policial, super exigente, foi logo dando início ao roteiro:

- Habilitação e documentação do veículo.

Entreguei o que ele pediu, ele foi lá atrás, ficou conferindo documento e placa do carro. Pela demora, imaginei alguma dificuldade de leitura. Ele voltou e, com os documentos nas mãos, começou a me pedir uma série de ações.

- Luz baixa, luz alta, seta pra direita, seta pra esquerda, pise no freio, buzina, calibragem do pneu, agua do radiador, pressão do óleo, livreto de revisão…

Como tudo estava certo, ele olhou para mim, sorriu um sorriso maroto, aquela coisa da relação, a atração forte, a sobrancelha esquerda levantada. Comecei a ficar com medo. Meeeeedooooo. É agora que esse guarda (eles detestam ser chamados de “seu guarda”) vai me cantar. Vi o sorriso dele nos olhos, vi que ele estava com a boca cheia de saliva…Pensei, quase em pânico:

- Estou ferrado. Esse cara vai me cantar.

Era o que a expressão corporal dele mostrava. Eu estava sozinho, não tinha mais ninguém na blitz. Estou ferrado. O cara, definitivamente, vai me cantar. Olhei para o guarda e vi a imagem da turma do Village People. Aí, viajei. Imaginei o guarda fazendo a coreografia do YMCA. 
"Young man, there's no need to feel down.
I said, young man, pick yourself off the ground."

Village Poeple. O guarda que me parou era a cara do último à direita.
E aí, pra completar, ele me solta a seguinte frase:

- Posso ver o seu extintor?

Socorrrrrrooooooo! O cara queria ver o meu extintor? Como assim? Já estava quase pronto para dar uma resposta desaforada quando lembrei que todo carro, realmente, tem um extintor. Por garantia, eu perguntei em tom de afirmação.

- O que fica embaixo do banco, não é isso?

Ele tem toda razão de querer saber do extintor de incêndio. Todos os dias, carros e carros pegam fogo nas ruas do Recife. São muitos incêndios. Todo dia morre gente porque o carro pegou fogo. Em termos de carros incendiados, a gente só perde pra Líbia neste momento. O guarda estava, de fato, preocupado com a minha segurança. Zelando pela minha segurança. Não havia segundas intenções na solicitação dele de querer ver o meu extintor. Ele só estava ali para me ajudar. E eu pensando mal do guarda. Como minha mente é perversa.

Todos os dias, mais de 500 carros entram em combustão espontânea no Recife. Assim, do nada, resolvem pegar fogo. Por isso, a necessidade do extintor. Na Líbia eles são incendiados.



Ai, ai, as blitze… A gente já sabe que elas não pegam bandidos, até porque estão sempre nos mesmos lugares. E bandido não é besta mesmo. Besta somos nós. Uma blitz, às 11h45 da manhã, numa sombra gostosa, no mesmo lugar de sempre, perto de um colégio, quer pegar quem? Quer pegar quem? Bandido? Que nada!  Os guardas estacionam suas motos sob uma árvore frondosa, por onde passe uma doce brisa, e tome a parar carro de pai que já está atrasado para pegar o filho no colégio…
A polícia de trânsito, na sombra, "controlando o trânsito" numa rua calma e abordando os pais que estão apanhando os filhos no colégio.  É a polícia protegendo e servindo o cidadão.

- Documento do veículo e habilitação.

Eu havia sido assaltado no cruzamento anterior, e nem vou gastar tanto tempo aqui descrevendo porque sei que você conhece esse tipo de assalto em cruzamento. Muito provavelmente, já passou por um ou conhece alguém que tenha passado. Eu não tinha mais documento, não tinha celular, não tinha dignidade, não tinha mais nada. O ladrão tinha levado tudo. Tinha o carro, mas a blitz estava ali pra me tomar o carro também. Antes o ladrão. Agora a blitz.

- Seu guarda…
E ele retruca:
- Guarda, não. Policial.

E eu, já aperriado, nervoso mesmo.

- Desculpe, seu guarda. Ai, meu Deus! Desculpe, POLICIAL. Eu acabei de ser assaltado. Que bom que vocês estão aqui.

O guarda olha pra mim, mas parece não ter acreditado na minha história.

- Quer dizer que o senhor não tem nem o documento do veículo, nem a habilitação.

- Pois é, seu guarda! Levaram tudo!

Ele levanta a voz.

- Eu já falei para o senhor que eu não sou guarda coisa nenhuma! Eu sou policial! O veículo está apreendido.

- Mas, seu guarda, eu acabei de ser assaltado! O ladrão ficou com a minha carteira onde estavam o documento do veículo e a minha habilitação. Por favor, seu guarda!

Nessa hora, ele dá um grito e expõe a sua veia jugular, me fazendo pensar que ela vai explodir.

- Caladooooooooo! O senhor está preso por desacato. Eu não sou guarda! Eu sou policiaaaaaaaallllll!!!!

Calado, penso comigo:

Que brabo! Que medo!

Então, nesse ponto do roteiro, do outro lado do canal, vejo os bandidos que haviam me assaltado. Aponto para eles e grito para os guardas, esperando uma ação imediata.

- Foram eles, foram eles!

E os guardas, calmamente, respondem:

- Só que a gente é polícia de trânsito. Não pega ladrão, entende? Ihhh, tá na hora do almoço. Eu ia levar o senhor preso, mas acabou o turno da gente. Deu sorte, viu, seu moço? Pode ir embora. É melhor fazer um B.O. dessa história que me contou. Vai que eu pego o senhor em outra blitz. Amanhã a gente vai estar aqui de novo, e se o senhor ainda não tiver resolvido essa história de andar por aí sem documento... Eu não sei, não. Eu não sei, não! Eu não ia querer estar no seu lugar. E lembre! É policial, viu? Policiaaaaaalllll!

Recosto no banco, ligo o rádio e, pra completar meu dia, o que está sendo tocado, naquele momento, é o início do refrão da música de Bruno e Marrone:

“Seu GUARDA, eu não sou vagabundo, eu não sou delinquente…”

E, agora, sou eu quem grita para o radio:

- É POLICIAAAAALLLLLL!!!!!

* Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência. Onde já se viu uma história dessas? Pare de achar que tudo que eu falo é verdade.