quarta-feira, 4 de maio de 2011

Até um dia

Eu tinha 9 anos de idade e estava, como se dizia antigamente, na 4ª série primária. Naquela época, o ensino de qualidade estava concentrado nas escolas públicas, e eu estudava no Grupo Escolar Martins Júnior, na Torre, um bairro da zona norte do Recife. Com a relativização de tamanho que toda criança faz, eu achava o Grupo Escolar monumental. Hoje, tenho dúvidas se cheguei a conhecer todos os cantos da escola, mas imagino que não fosse tão grande assim. Lembro que havia escadarias que levavam à porta principal e, antes dela, uma sacada grandiosa onde ficavam concentrados os alunos antes do toque para entrar. E era dessa sacada que eu esperava pelo início da minha felicidade diária. Era dessa sacada que eu a via chegar todos os dias. Negros cabelos densos repartidos de lado; maquiagem leve, mas com um batom vermelho vinho, cuidadosamente aplicado, que ressaltava os seus lábios perfeitos; uma elegância que eu distinguia ao longe, mais uma vez, considerando a relativização de tamanhos e distâncias para uma criança. Esse longe era apenas o outro lado da rua. Ela descia do carro e, para mim, naquele exato momento, era como se todas as outras pessoas desaparecessem. Era apenas ela que eu via. Ela era Dona Dulce.
Na minha época de primário, não havia ainda essa história de Tia. Tia só se fosse irmã do meu pai ou da minha mãe. Por mais clichê que seja, Dona Dulce, a minha professora primária, foi, de fato, a primeira paixão da minha vida. Morria de ciúmes do marido dela, o bigodudo que dirigia um fusca vermelho e que a trazia, todos os dias, para ficar a manhã inteira junto de mim. Naturalmente, eu sentava na primeira fila, prestava atenção até na respiração dela, não falava com ninguém...Eu só tinha olhos e ouvidos para Dona Dulce.


Tenho certeza de que foi por conta da minha paixão por Dona Dulce, e exclusivamente por isso, que as minhas notas foram excelentes apenas até a 4ª série. Terminado o primário, fui para uma outra escola e foi quando a minha vida transformou-se numa verdadeira esbórnia, uma zona total. A minha paixão por Dona Dulce passou e era um outro momento, completamente diferente do que eu havia vivido até então. Agora, o meu novo colégio, também público, ficava muito distante de minha casa. Aquele colégio era, sem dúvida, o admirável mundo novo a que Aldous Huxley se referiu em seu livro. Como não havia nenhuma Dona Dulce e, sim, inúmeros outros novos interesses, as notas, naturalmente para o meu desespero, despencaram. Aliás, essa foi uma luta permanente pelo resto da minha tumultuada vida acadêmica. Eu me recusava a estudar o que eu tinha dificuldade para aprender. E resolvia estudar apenas aquilo que me dava prazer. Obviamente, uma fórmula que não funcionou. Nenhum dos professores relegados por mim aceitou ver que eu era genial nas outras matérias...Tá, tá bom. É verdade, você tem razão. “Genial” é propaganda enganosa. Um exagero dos diabos.

Mas por que isso de revisitar a 4ª série primária e a minha paixão por Dona Dulce? Talvez porque tenha sido o primeiro evento de relevância da minha vida que eu me recorde. Não consigo lembrar de nada antes disso. Essa época é como o início da minha linha da vida. É como se todos os acontecimentos que me trouxeram até aqui tivessem começado naquele Grupo Escolar. É uma sensação parecida com a que temos quando começamos uma edição, em que escolhemos as cenas que vão formar o timeline do nosso filme. É exatamente assim que funciona a nossa vida: um linha de tempo de edição. À medida que os eventos vão acontecendo, a gente vai colocando-os nessa linha. Cada período forma um filme. E esses filmes vão ficando para trás, e a gente vai se desapegando de pessoas e coisas que fizeram parte dele. Quantos amigos ficaram pelo caminho? Tantas lágrimas. Tantas dores. Quantos escaparam? Quantos morreram? Nós – eu e você - sobrevivemos. Superamos a dor, nos desgarramos dos momentos tristes e até mesmo dos alegres, nos desgarramos de todas as coisas. Tudo foi ficando para trás, exatamente como na linha de tempo da edição. Fomos construindo novas passagens, criando novas cenas. Talvez seja por isso que, imediatamente antes da morte, nós assistimos ao filme inteiro da nossa vida. Dizem que é exatamente assim, que a vida passa inteira à nossa frente, como se fosse um filme. Se for, é legal. Eu sou cinéfilo mesmo, adoro um cineminha.

Hoje, estou colocando para trás mais um bloco na minha linha de tempo. Foram quase quatro meses contando histórias, rindo ao escrevê-las, organizando palavras que soltas não significariam nada. Foi delicioso dividir minha vida com você, especialmente se isso arrancou um sorriso seu. Estou me desgarrando dos textos, das minhas palavras, estou deixando que eles façam parte do meu passado. Estou partindo e deixando-os partir para, quem sabe, resgatá-los no futuro. Como resgatamos memórias perdidas, como resgatamos amigos, como resgatamos a nossa própria vida. Foi muito bom saber que você me leu ao longo desses quinze textos. Foi melhor ainda experimentar o gosto de contar as histórias que contei. Foi como vivê-las novamente, cada uma delas. Valeu a pena. Obrigado.

“Até um dia
até talvez
até quem sabe…” (João Donato)