quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A Agonia da Iniciação

Era o primeiro comercial que eu havia criado e ia dirigir. Uma coisa meio grandiosa, com 350 crianças, em um estádio de futebol. Carregaria por muito tempo o arrependimento dessa criação. Como o cliente havia aprovado o roteiro, lá fui eu com a equipe e as 350 crianças para o estádio.


Dirigir um filme publicitário é uma coisa que dá prazer, mas é muito trabalhoso. É trabalhoso quando os atores são profissionais, quando tudo dá certo na produção, quando as condições meteorológicas cooperam. É trabalhoso porque essa é mesmo a natureza do nosso trabalho.Transformar uma ideia, uma visão que se teve e realizar aquilo. Mesmo com todos os pontos sob controle, ainda é trabalhoso. Agora, quando você acrescenta um elemento chamado criança e o multiplica por 350, significa que, deliberadamente, você quer trazer o caos para a sua produção.

Era um filme para um colégio. O roteiro era emocional por conta da época de veiculação, próxima ao Natal. Aliás, eu não sei escrever nada que não seja emocional. Adoraria saber escrever humor. Essa é uma grande frustração. Como não sei escrever humor, acho que isso, necessariamente, me torna um cara sem graça. Morro de inveja de comerciais que usam humor inteligente. Dou gargalhadas de admiração e choro por dentro - de inveja - por não saber fazer nada engraçado. Mas, no terreno emoção, até que mando bem. E era isso o que eu tinha que fazer naquela tarde de novembro. Fazer 350 crianças correrem em direção à câmera e dali de volta para o ponto de partida, para mais uma vez e mais outra e mais outra e de outro ângulo, de outro, de cima, de baixo, de lado, no travelling, no plano, contraplano, ufa! Tem gente que olha e não acredita que a gente use tudo aquilo na ilha de edição. Mas, se a gente não fizer, na ilha será fatalmente tarde demais para se arrepender. Então,vamos botar essa criançada pra correr. Afinal, toda aquela insuportável energia precisava ser gasta.

A ideia era que, com o jingle – também na linha emocional – as crianças viessem correndo. Legal, mas eu queria isso em slow. O cara da edição olha pra mim e grita:

 –  Puta que o pariu! Slow?! Ô, diretor, só tem uma máquina em Recife que faz slow. É uma BVU-820 lá da Manchete. Conheço um cara,que conhece um cara, que é amigo de um outro cara que trabalha lá na Manchete no horário da madrugada. É a única hora que você pode conseguir colocar essa cena em slow.

Tem alguns palavrões que entram mesmo na hora certa. Naquela hora, só um puta que o pariu podia traduzir toda a dramaticidade da situação. Detesto fazer qualquer coisa que não seja lícita. Fico sem jeito. Não, não é uma questão de puritanismo. É frouxura mesmo. Desde criança, sempre detestei ser  chamado à atenção. E essa era uma situação que tinha tudo para dar errado ou, para entrar no clima da ilha de edição, era uma situação que tinha tudo para dar merda.

Lá fomos nós – eu e meu produtor – para as instalações técnicas da Rede Manchete, em Recife. A torre parecia um cálice e ficava próxima ao bairro de Ouro Preto, em Olinda. Passava um pouco da meia-noite. Para mim, um filme de terror. O meu produtor era extremamente safo. Então, ele procurou saber, já com o vigilante, quem era o cara que era amigo do cara que conhecia o cara que o meu editor conhecia.

Cena para VT Globo Nordeste no Parque 13 de Maio
Até hoje, mesmo trabalhando há mais de 25 anos com televisão, ainda sou fascinado por todas aquelas microluzes dos equipamentos, aqueles inúmeros monitores, o ambiente frio, a penumbra e o sentimento de que se você tropeçar num fiozinho daquele, simplesmente F-O-D-E-U. Como eu sou extremamente desastrado, você pode imaginar como tremia a cada passo que dava.

Começamos a transformar a imagem de tempo real em 50% de slow. Sempre fui apaixonado por slow. Os movimentos ficam mais harmoniosos, mais bonitos. O mundo é muito mais bonito em câmera lenta. Comecei a vibrar com o resultado. Chegou a hora de colocar o áudio que havíamos captado no local na edição. Percebi que alguma coisa estava dando errado. Passaram-se 15 minutos, 20, meia hora, 45 minutos, uma hora e meia. Fodeu! Não sei se você percebeu, mas essa palavra estava começando a me perseguir naquela noite. Recebi a notícia que eu não conseguiria finalizar o comercial na Manchete. A máquina tinha dado um tilt. - Puta que o pariu! (essa expressão também)...


- E agora?!

 - Calma, diretor! Aquele cara ali conhece um cara que é amigo de um
cara que é vizinho de um cara que trabalha na TVU. Isso mesmo TV Universitária.

- Tá, mas são 2 da madrugada e, se você não sabe, um cara que
trabalha na TVU é funcionário público.

- Relaxa, diretor. O cara é legal.

Que jeito? Eu tinha que entregar a fita à Globo até às 14h do dia seguinte. Estava há 48 horas acordado porque, ao terminar a gravação, havia entrado direto na ilha de edição da produtora. Conseguimos localizar o cara da TVU. Cara bem legal, preciso dizer. Fomos apanhá-lo em casa, lá do outro lado da cidade.

Chegamos às instalações da emissora. Ao entrarmos na ilha de edição, vi que havia uma garrafa de Coca-Cola, pela metade, em cima de uma velha máquina de mesa U-Matic. Tentando ser solícito, e achando perigoso aquela garrafa ali, em cima de um aparelho eletrônico, fui colocando a mão na garrafa para tirá-la e levá-la até um lugar mais adequado. Nessa hora, o editor, o cara legal, deu um grito:

- NÃÃÃÃÃÃOOOOOOO!!!!!!

Será que você consegue imaginar o meu susto? Ele pediu desculpas e me explicou: aquela máquina estava há bastante tempo sem funcionar. Um certo dia, alguém entrou com uma garrafa de Coca-Cola numa mão e um sanduíche de queijo na outra – algo extremamente impróprio para uma ilha de edição – e aí resolveu pousar a garrafa na máquina inerte. Para surpresa sua, ao colocar o recipiente sobre a máquina, as suas luzes se acederam e o equipamento voltou a funcionar. Desde então, a garrafa de Coca-Cola tinha ficado em cima da máquina para que ela não mais parasse.

Pegamos no comercial, agora já com a cena em slow para fazer o resto da edição. Nunca confie no prazo que um editor lhe dá para realizar uma ação na ilha. 2:30, 2:45, 2:55, 3:05, 3:15, 3:30, 4:30. E, então? Já sabe o que aconteceu? Isso, exatamente isso: F-O-D-E-U-! – E agora?
Rapaz, agora só tem uma solução. A TV Gazeta, em Maceió, tem uma máquina Quadruplex que roda o slow e pode fazer o resto da edição. Comecei a fazer cálculos. Você já notou que quando fazemos cálculos somos sempre otimistas? Saindo de Recife para Maceió, três horas e meia, isso significa que chegaríamos às 8h. Que fizéssemos os acertos, contratação dos serviços da Gazeta, 9h na ilha. Como seria rápido, 10h terminaríamos o trabalho, mais 3 horas e meia de Maceió a Recife, chegaríamos às 13:30, a tempo de entregar a fita na Globo. É claro que todos os cálculos foram por água abaixo. Conseguimos editar o comercial, mas chegamos no escritório da Globo, que ainda funcionava no Ed. San Rafael, no centro do Recife, às 14h e 10min. Teríamos que levar a fita no Morro do Peludo, em Olinda. Corre pro morro! Eu, com a adrenalina a mil, fazia loucuras dirigindo. Uma luta contra o tempo. Não esqueça, por favor, que este era o primeiro comercial da minha vida. É, pois é, a gente nunca esquece, não é mesmo?

Enfim, chegamos às instalações da Globo em Olinda. Somos recebidos por muitas caras feias. Vivíamos o ano de 1986. Lá vem a Coordenadora Comercial do horário. Ela pega a fita, olhar aborrecido pelo meu atraso, entrega para um operador e ordena:

- RODA! 

Imediatamente após ela dar a ordem, eu balbucio:

       São três versões.

Acaba a primeira versão, ela grita:

- CONDENA!

Roda a segunda versão e ela repete:

-       CONDENA!

Eu fico apreensivo, morrendo de medo, o coração apertado, mas ainda existe a terceira versão, a minha esperança, o meu otimismo, o meu tudo. Roda a terceira versão e a filha da puta daquela coordenadora grita sadicamente:

CONDENAAAHAHAHAHAHAHAHAHAH!

Procurei uma cadeira para sentar, achei. O sangue havia
sumido, estava muito mal mesmo. O mundo havia caído sobre mim. Sentei na cadeira. Nessa hora, exatamente nessa hora, chega um outro filho da puta de um operador, bate no meu ombro e fala:  

- Ô, rapaz, você não pode sentar nessa cadeira, não!

Levantei e, exatamente nessa hora, o sangue foi todo embora do meu cérebro, a visão escureceu e eu fui caindo. O contato da Globo me amparou e me levou para uma sala onde me deram café, água e abana daqui, abana dali, o cara tá morrendo... eu comecei a recobrar a cor. Imagine a minha vergonha. Estava há 72 horas sem dormir, alimentado apenas com muitos e muitos cigarros. Não podia dar outra. O velho e constrangedor chilique.

Soube, ao me recompor, que a Coordenadora se sensibilizou com o meu estado e, magnânima, liberou uma das versões para ir ao ar. A minha iniciação tinha sido uma agonia, além de quase me fazer desistir da profissão.

Demorei muitos anos para voltar a criar alguma coisa com slow. Foi uma reconciliação difícil. Mas, me reconciliei. Hoje, feito digitalmente, é uma operação simples, muito simples. No entanto, jamais esquecerei aquele slow desgraçado, no primeiro comercial da minha vida. Puta que o pariu, mesmo!