quinta-feira, 31 de março de 2011

Subversivo Bundão

Houve um tempo em que ser comunista era ser cabeça. E, no Recife, galera cabeça podia morar em qualquer lugar, menos em Boa Viagem, bairro chique da zona sul. Lá só moravam os boyzinhos e filhinhos de papai. Nós, que éramos da zona norte da cidade, nos sentíamos superiores em tudo. Afinal, íamos para o teatro, líamos Brecht e Pirandello, discutíamos Nietzche e vomitávamos frases pinçadas de O Capital, do velho Karl Marx. No frigir dos ovos, éramos também boyzinhos, filhinhos de papai. Só que da zona norte, o que nos conferia uma aura de pseudointelectualidade revolucionária. Como éramos bestas!

Estávamos saindo da era da porrada, do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, para entrar na distensão, lenta e gradual, do general-presidente Ernesto Geisel. E bote lenta nisso. O operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog foram duas das mortes que vieram a público nessa época. Lembro que a foto de Geisel nas capas de revista me assustava. 
Médici e Geisel. Só de olhar, dava medo.

Mas eu - ainda bem - nunca cheguei a sofrer nada. Nem um arranhãozinho. O mais próximo que o regime militar chegou de mim foi quando minha irmã mais velha teve que se esconder numa cidadezinha, perto de Garanhuns, chamada Jupi. Toda sexta-feira à noite, eu e meus pais íamos vê-la. Primeiro, saíamos rodando feito peru bêbado, em véspera de Natal*, pelas ruas do Recife, para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Só depois de muito rodar, pegávamos a BR-232, que ainda não era duplicada, em direção a Jupi. Para mim, esse era o momento de maior emoção. Eu tinha apenas 15 anos, mas, como meu pai chegava morto de cansado do trabalho na sexta-feira, a responsabilidade de dirigir o carro na estrada era minha. Eu me sentia O Subversivo. Agora, imagina se tem uma blitz no caminho...

- Habilitação e documento do veículo.

- Tenho, não, seu guarda. O problema é que eu sou de menor e, como meu pai tá muito cansado pra dirigir, sobrou pra mim. A gente tá indo ali, pertinho, ver minha irmã subversiva que tá escondida em Jupi.

Já pensou na merda? Felizmente, essa blitz nunca aconteceu.

Olhava constantemente pelo retrovisor para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Mantinha-me atento, tensão proposital. Sentia como se eu fosse o artista de um filme de suspense. E, de fato, havia razões para essa neura. Um dos amigos de minha irmã, companheiro de lutas estudantis, foi preso e torturado. Conseguiu sair, mas ficou completamente abestalhado. Eu fiquei impressionado com a cara dele e, mais tarde, lendo o livro Brasil Nunca Mais, com o relato de torturas dos presos políticos, consegui entender a dor lancinante que ele teve de suportar. O coitado tinha toda razão de ficar abilolado.
Brasil Nunca Mais: relato de presos políticos que sofreram tortura no regime militar.

Ainda bem que eu não tinha idade para fazer parte da “luta”. Pra você ter uma ideia de como sou frouxo, eu urro de dor quando minha mulher resolve cortar as unhas do meu pé. Assim, tente imaginar o torturador querendo arrancá-las a seco como se conta nos relatos daquela época. Se eu fosse preso, bastaria me ameaçar com um choquinho que eu entregaria o aparelho inteiro, a célula inteira, todos os meus companheiros. No ato! Muito bonito lutar pela causa, mas eu seria um péssimo subversivo. Negócio mais sem graça ficar levando porrada e choque nos ovos.

A verdade, no entanto, é que eu e meus amigos herdamos, da geração imediatamente anterior a nossa, a possibilidade de nos mostrarmos contra o regime militar, sem correr mais tanto perigo de ser preso e torturado. A gente podia ir para os bares de Olinda e ficar cantando “Caminhando e cantando e seguindo a canção...”, “Apesar de Você”, “Cálice” e não sofrer nada. Fazíamos o maior sucesso. Era o máximo da subversão a que nos permitíamos. Eu e meu amigo, Marconi Meira, hoje respeitado cirurgião, éramos figurinhas carimbadas nos bares de Olinda. Chegávamos de violão em punho, começávamos a cantar e logo se formava uma roda em torno da gente. Passávamos aquela imagem de subversivo. Cabelão, barbão, chinelão, mas a verdade nua e crua é que éramos boyzinhos, filhinhos de papai tirando onda de revolucionários. Se alguém ameaçasse dar um choque, a gente entregava até Geraldo Vandré e a mãe dele. Eita que eu era um subversivo bundão! Ainda bem que a redemocratização do país já estava acontecendo.

Muitos anos depois, analisando friamente, será que todas aquelas mortes valeram a pena? Será que, de algum lugar no firmamento, não tem um subversivo morto pensando:

- Caramba, apanhei pra cacete, levei choque, pau-de-arara, dedo no... (não importa) e essa porra não entrou nos eixos?

O Brasil é um país muito doido. A gente ama e odeia, ao mesmo tempo, o tempo todo. Um potencial imenso, mas com muitas deformidades de caráter. A História explica tudo. Laurentino Gomes, no seu livro 1822, relata que Dom Pedro I comprava cavalos comuns, verdadeiros pangarés, e cravava neles a marca da Fazenda Real para vendê-los por valores muito maiores. Se o próprio Imperador fazia isso...


*No passado, quando ainda não havia peru de Natal com termômetro pra avisar que estava pronto, dava-se cachaça ao peru antes de trucidá-lo. Que coisa primitiva.


Impressionantemente, no texto desta semana não tem ficção. Tudo aconteceu de verdade.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A Blitz me pegou!

É muito provável que você, que está me lendo agora, já tenha sido parado por uma blitz. Aliás, a origem dessa palavra é esclarecedora e temerosa. Ela vem de Blitzkrieg, uma doutrina militar nazista. Dando um “copy/paste” na Wikipedia, historicamente, “seus três elementos essenciais se baseavam no efeito surpresa, na rapidez da manobra e na brutalidade do ataque, e seus objetivos principais eram a desmoralização do inimigo e a desorganização de suas forças.” Continua da mesma forma. É exatamente assim que você se sente ao ser parado por uma das blitze da polícia nas ruas. Desmoralizado e brutalizado. Na mesma hora você se pergunta: será que eles acham que eu sou bandido? Que nada, eles sabem que você não é bandido. Aliás, umas das coisas que blitze (o plural é assim, feio mesmo: blitze) não param é bandido. Porque o bandido sempre sabe onde está a blitz. Tente, você, encontrar alguma estatística sobre a prisão de bandidos em blitz de trânsito. Hahahahaha.

Eu tenho uma relação intensa com as blitze. Existe uma forte atração entre nós. Se tem blitz, eu sei que vou ser parado. Ela olha pra mim, eu olho pra ela e lá vamos nós, repetir o roteiro sempre igual. O que me chateia é que não sei a razão de a blitz estar sempre no mesmo lugar. Eu já fui parado na mesma rua, no mesmo quarteirão, diversas vezes. É aquela atração, sabe?

Uma dessas, em que fui parado, era uma blitz de trânsito. O policial, super exigente, foi logo dando início ao roteiro:

- Habilitação e documentação do veículo.

Entreguei o que ele pediu, ele foi lá atrás, ficou conferindo documento e placa do carro. Pela demora, imaginei alguma dificuldade de leitura. Ele voltou e, com os documentos nas mãos, começou a me pedir uma série de ações.

- Luz baixa, luz alta, seta pra direita, seta pra esquerda, pise no freio, buzina, calibragem do pneu, agua do radiador, pressão do óleo, livreto de revisão…

Como tudo estava certo, ele olhou para mim, sorriu um sorriso maroto, aquela coisa da relação, a atração forte, a sobrancelha esquerda levantada. Comecei a ficar com medo. Meeeeedooooo. É agora que esse guarda (eles detestam ser chamados de “seu guarda”) vai me cantar. Vi o sorriso dele nos olhos, vi que ele estava com a boca cheia de saliva…Pensei, quase em pânico:

- Estou ferrado. Esse cara vai me cantar.

Era o que a expressão corporal dele mostrava. Eu estava sozinho, não tinha mais ninguém na blitz. Estou ferrado. O cara, definitivamente, vai me cantar. Olhei para o guarda e vi a imagem da turma do Village People. Aí, viajei. Imaginei o guarda fazendo a coreografia do YMCA. 
"Young man, there's no need to feel down.
I said, young man, pick yourself off the ground."

Village Poeple. O guarda que me parou era a cara do último à direita.
E aí, pra completar, ele me solta a seguinte frase:

- Posso ver o seu extintor?

Socorrrrrrooooooo! O cara queria ver o meu extintor? Como assim? Já estava quase pronto para dar uma resposta desaforada quando lembrei que todo carro, realmente, tem um extintor. Por garantia, eu perguntei em tom de afirmação.

- O que fica embaixo do banco, não é isso?

Ele tem toda razão de querer saber do extintor de incêndio. Todos os dias, carros e carros pegam fogo nas ruas do Recife. São muitos incêndios. Todo dia morre gente porque o carro pegou fogo. Em termos de carros incendiados, a gente só perde pra Líbia neste momento. O guarda estava, de fato, preocupado com a minha segurança. Zelando pela minha segurança. Não havia segundas intenções na solicitação dele de querer ver o meu extintor. Ele só estava ali para me ajudar. E eu pensando mal do guarda. Como minha mente é perversa.

Todos os dias, mais de 500 carros entram em combustão espontânea no Recife. Assim, do nada, resolvem pegar fogo. Por isso, a necessidade do extintor. Na Líbia eles são incendiados.



Ai, ai, as blitze… A gente já sabe que elas não pegam bandidos, até porque estão sempre nos mesmos lugares. E bandido não é besta mesmo. Besta somos nós. Uma blitz, às 11h45 da manhã, numa sombra gostosa, no mesmo lugar de sempre, perto de um colégio, quer pegar quem? Quer pegar quem? Bandido? Que nada!  Os guardas estacionam suas motos sob uma árvore frondosa, por onde passe uma doce brisa, e tome a parar carro de pai que já está atrasado para pegar o filho no colégio…
A polícia de trânsito, na sombra, "controlando o trânsito" numa rua calma e abordando os pais que estão apanhando os filhos no colégio.  É a polícia protegendo e servindo o cidadão.

- Documento do veículo e habilitação.

Eu havia sido assaltado no cruzamento anterior, e nem vou gastar tanto tempo aqui descrevendo porque sei que você conhece esse tipo de assalto em cruzamento. Muito provavelmente, já passou por um ou conhece alguém que tenha passado. Eu não tinha mais documento, não tinha celular, não tinha dignidade, não tinha mais nada. O ladrão tinha levado tudo. Tinha o carro, mas a blitz estava ali pra me tomar o carro também. Antes o ladrão. Agora a blitz.

- Seu guarda…
E ele retruca:
- Guarda, não. Policial.

E eu, já aperriado, nervoso mesmo.

- Desculpe, seu guarda. Ai, meu Deus! Desculpe, POLICIAL. Eu acabei de ser assaltado. Que bom que vocês estão aqui.

O guarda olha pra mim, mas parece não ter acreditado na minha história.

- Quer dizer que o senhor não tem nem o documento do veículo, nem a habilitação.

- Pois é, seu guarda! Levaram tudo!

Ele levanta a voz.

- Eu já falei para o senhor que eu não sou guarda coisa nenhuma! Eu sou policial! O veículo está apreendido.

- Mas, seu guarda, eu acabei de ser assaltado! O ladrão ficou com a minha carteira onde estavam o documento do veículo e a minha habilitação. Por favor, seu guarda!

Nessa hora, ele dá um grito e expõe a sua veia jugular, me fazendo pensar que ela vai explodir.

- Caladooooooooo! O senhor está preso por desacato. Eu não sou guarda! Eu sou policiaaaaaaaallllll!!!!

Calado, penso comigo:

Que brabo! Que medo!

Então, nesse ponto do roteiro, do outro lado do canal, vejo os bandidos que haviam me assaltado. Aponto para eles e grito para os guardas, esperando uma ação imediata.

- Foram eles, foram eles!

E os guardas, calmamente, respondem:

- Só que a gente é polícia de trânsito. Não pega ladrão, entende? Ihhh, tá na hora do almoço. Eu ia levar o senhor preso, mas acabou o turno da gente. Deu sorte, viu, seu moço? Pode ir embora. É melhor fazer um B.O. dessa história que me contou. Vai que eu pego o senhor em outra blitz. Amanhã a gente vai estar aqui de novo, e se o senhor ainda não tiver resolvido essa história de andar por aí sem documento... Eu não sei, não. Eu não sei, não! Eu não ia querer estar no seu lugar. E lembre! É policial, viu? Policiaaaaaalllll!

Recosto no banco, ligo o rádio e, pra completar meu dia, o que está sendo tocado, naquele momento, é o início do refrão da música de Bruno e Marrone:

“Seu GUARDA, eu não sou vagabundo, eu não sou delinquente…”

E, agora, sou eu quem grita para o radio:

- É POLICIAAAAALLLLLL!!!!!

* Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência. Onde já se viu uma história dessas? Pare de achar que tudo que eu falo é verdade.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ficção ou Realidade?

Quando você assiste a um comercial de 30” na televisão, no cinema ou na internet, não tem a menor ideia do trabalho que deu para aquilo ficar pronto. E, normalmente, se o comercial é bom, ao final, você normalmente pensa: “Já acabou? Assim, tão rapidinho?”.  Por mais sexual que pareça, é exatamente essa a sensação – para quem assiste. Para quem dirige o comercial, geralmente é um trabalho que mistura muito prazer e muita dor.  Uma coisa meio sado-masoquista, com ingredientes de surpresa a cada cena.  Reverência a Freud, neste início de texto, tão cheio de expressões inconscientes.

Não é raro um comercial de 30 segundos demorar séculos para ser gravado, isso sem contar as inúmeras horas de pós-produção na ilha de edição. Por isso, quem não é da nossa área fica de saco cheio rapidinho se tiver de acompanhar uma gravação e sempre arranja um jeito de sair de fininho. Assim, quando alguém diz que vai acompanhar uma gravação minha, e se eu não estiver querendo que ela fique, eu começo a repetir a mesma cena, deixo o andamento bem devagar, faço tudo de forma muito enfadonha. Não demora muito e o intruso despista e vai embora. Mas, normalmente, a cena é mesmo repetida até ficar perfeita. Na edição, então, normalmente bate o maior sono em quem não está envolvido no trabalho, por conta da temperatura super agradável e do ambiente de meia-luz. Não, isso não tem nada a ver com Freud. A meia-luz é apenas para evitar interferência no julgamento do padrão de cores das imagens no monitor.

No início de 2010, meu grande amigo Arísio Coutinho, diretor de programação da Globo Nordeste, me apresentou um projeto muito especial. Arísio é um carioca apaixonado por Pernambuco. Ele me mostrou uma música cantada por vários artistas pernambucanos. Uma coisa muito emocionante mesmo.

O tempo do intervalo comercial na TV é dividido em frações de 15 segundos. Assim, você normalmente assiste a filmes de 15”, ou 30”, ou 45”, ou 60”. Este era ainda maior: um minuto e meio - 90”. Mas, de cara, senti a beleza da música e como ela podia resultar num filme bonito. Uma linda homenagem a Pernambuco, cantada por artistas pernambucanos. Tinha Alceu Valença, Lenine, Dominguinhos, o Rei -  Reginaldo Rossi, Antônio Nóbrega, André Rio, Cristina Amaral, Zé Brown e mais uma pá de gente.

Toda gravação começa, primeiramente, com a visão de quem vai dirigir. Então, eu normalmente começo a trabalhar olhando para o teto, fecho os olhos, baixo a cabeça na mesa, deito no sofá. Quem entra em minha sala, e me pega no meio de um processo desses, tem a certeza de que eu estou na maior preguiça, vadiando no trabalho. Mas eu juro que o processo, para mim, funciona exatamente assim. Quando eu começo a ter as visões – opa, isso parece coisa de filme de terror –, é chegada a hora de colocar tudo no que chamamos de storyboard, para que toda a equipe compartilhe a minha visão. E aí a gente tenta planejar cada cena bem direitinho. E lá vou eu com o meu planejamento:

O storyboard dá uma ideia geral para a equipe do que vamos realizar.

- Vamos começar a gravação na segunda-feira, às 6 da manhã porque a luz do sol é melhor nessa hora, porque a gente consegue fazer mais outras cenas ao longo do dia, etc e tal.”

Mas, aí, surge o primeiro problema para derrubar todo o planejamento: qual artista acorda às 6h da manhã? Nenhum. Então, o sol subiu, está lá em cima, a pino... Tem que usar um butterfly, que mais parece um mosquiteiro; um HMI, que é uma luz bem forte para usar como se fosse o sol, durante o dia. E foi desse jeito, com a ajuda de equipamento, que o primeiro problema foi resolvido. Em seguida, a gente entraria num consenso com os artistas porque, afinal de contas, o filme não poderia ter apenas cenas noturnas.

Butterfly é essa estrutura para evitar o sol a pino.

Quando crio, eu vou tentando fazer a coisa de forma a ter uma margem boa para rodar o máximo de cenas ao longo de um dia. Assim, pensei imagens para o dia e para a noite, mas elas tinham que se encaixar perfeitamente no andamento da música. 
Na casa de Alceu, em Olinda.
Gravei Alceu, em Olinda; Lenine, na praça de Casa Forte; Reginaldo Rossi, na praia de Boa Viagem; Antônio Nóbrega, no Teatro Valdemar de Oliveira.

Nando Cordel gravando a sua participação numa das versões do clip. HMI é a luz que está em quadro.

A frase musical de Dominguinhos era assim:

- O melhor São João do mundo, isso eu posso afirmar...

Só isso. Imaginei Dominguinhos no meio de um pessoal dançando quadrilha, num arraial todo enfeitado, com balões, bandeirinhas e fogueira. Primeiro problema: a gente estava em março. Como conseguir tantos elementos juninos? Mas isso a produção resolve. A produção sempre resolve tudo.

O lugar para fazermos o arraial foi escolhido. Bandeirinhas, balões, fogueira, milho, o pessoal da quadrilha junina. Perfeito. E aí eu chego para a minha produção e pergunto:

- E então, pessoal, quando vamos gravar Dominguinhos?

Nesse momento, as pessoas se entreolham e Katherine, que estava coordenando os artistas, diz pra mim, cheia de tristeza nos olhos.

- Dominguinhos disse que não vem, Ivanildo.  Falei como era importante ele gravar, ele agradeceu muito, disse que estava em tratamento de saúde e que não podia vir.

Desesperado, pensei numa solução.

- Kacá, a gente coloca ele num avião de manhã, ele grava rapidinho e volta no mesmo dia para São Paulo. Fala pra ele, fala!

O problema é que Dominguinhos não entra em avião nem amarrado. Ele percorre o Brasil todinho de carro. E, agora, o que a gente faz? Leva a produção toda pra São Paulo? Não tem verba pra isso. Tira Dominguinhos do roteiro? Não pode. O cara é um artista maravilhoso, discípulo de Luiz Gonzaga. Mas tinha que ter medo de avião e, ainda por cima, estar em São Paulo?!! Eu tinha que ter pensado nele no meio de um arraial?!!! Eu tinha que ser publicitário? !!!!!!!!!

Mas, então, a salvação... É nessas horas que eu me apaixono pela tecnologia. Hoje, a gente consegue fazer coisas que a ILM, Industrial Light and Magic, de George Lucas, fazia 20 anos atrás. Desde que a gente tenha muito cuidado, muito planejamento e, naturalmente, gente muito competente trabalhando na equipe. E, assim, decidi. Já que a montanha não vai a Maomé, Maomé vai à montanha. Kacá iria com o nosso diretor de fotografia, Santana, gravar Dominguinhos nos estúdios da Globo, em São Paulo. Antes, gravaríamos a quadrilha no arraial, e depois, na pós-produção, transformaríamos as duas cenas numa só. E, pronto! Dominguinhos cantando no arraial. O nome desse processo é chroma key.  No passado, a diferença entre as cenas ficava muito evidente. Hoje, a tecnologia digital permite um recorte perfeito, uma montagem imperceptível.

No dia da gravação do arraial, chovia a cântaros (eita que essa expressão é velha mesmo!). Era, praticamente, um dilúvio. Mexe daqui, ajeita dali, termina o arraial, viaja pra São Paulo, grava com Dominguinhos... Na cena final, depois da pós-produção, ninguém percebe que o artista e os figurantes estavam em locais totalmente diferentes.
Cena final do filme gravada no Parque 13 de Maio.

É só então que você se dá conta de que as coisas em televisão ficam grandes mesmo. Uma quadrilha junina com 40 participantes, equipe técnica com 15 pessoas, gravação em Recife, gravação em São Paulo, equipamentos, luzes, maquiagem, produção...Tudo isso para uma cena de 5 segundos. Hoje, quando assisto ao filme, fico em dúvida se tudo isso realmente aconteceu. Será que Dominguinhos não gravou aqui mesmo em Recife e eu inventei essa história toda? Ficção ou realidade?


Se você tiver dificuldade em rodar o vídeo, pode acessar também no link abaixo:
http://www.youtube.com/watch?v=jJb_6ENValk



quinta-feira, 10 de março de 2011

Cadê a parada?


Sempre tive um grande pavor de multidão. Então, imagine o suplício que é, para mim, estar no Galo da Madrugada. Percebi que tinha esse distúrbio da forma menos glamourosa possível. Ainda aos 8 anos de idade, meus pais resolveram me levar para assistir à parada militar do 7 de setembro. Em plena ditadura militar. Um inferno. Gente, muita gente. Um calor de torrar os miolos naquele sol das 11h da manhã. Eu, imprensado por aquela multidão, sufocado pela mistura de suor com perfume que pairava no ar, sem ver nada. Ouvia, sim, clarins tocando, barulho de motores, gritos de ordem...Aquela coisa toda foi tomando conta da minha cabeça, que começou a rodar, tudo em volta começou a escurecer, era como se o dia estivesse virando noite em poucos segundos. Sem sentir mais as pernas, fui caindo, e lembro que meu pai me pegou nos braços e me levou para longe dali. Aos poucos, recobrei a cor e tomei um abuso por militar de qualquer parte do mundo, e não apenas do Brasil, e jamais voltei a assistir a uma parada de 7 de setembro.

O distúrbio voltou a se manifestar muitos anos depois, numa apresentação da Paixão de Cristo, em Nova Jerusalém. Quem já teve a oportunidade de assistir sabe que o espetáculo é magnífico. A história é encenada num teatro ao ar livre, com 12 palcos-plateia, o público se movendo de ato em ato, atores excelentes e efeitos de luz e som impressionantes. Tudo isso faz com que você se sinta na Jerusalém dos tempos de Cristo. É fascinante. O espetáculo é assistido em pé, e a última cena – a da ascensão de Cristo – é a mais emocionante. Todas as cenas têm uma imensa carga dramática, mas a da ascensão, além de ser plasticamente perfeita, é carregada de um simbolismo muito forte. Ilustra bem o sentimento, que muitos têm, de vida após a morte.

Pois foi exatamente nessa cena que me vi rodeado de gente. Muita gente. As pessoas se imprensavam umas contra as outras buscando ficar mais próximas da ação. Comecei a me sentir esmagado por aquele mar de gente. O meu corpo franzino de adolescente começou a se sentir triturado e já não tinha forças para se impor contra o movimento da multidão que, cada vez mais, me comprimia. Senti que o sangue havia sumido de minha cabeça, uma dormência tomou todo o meu corpo. Foi no ápice da cena, quando o Cristo começou a subir em direção ao céu, que eu comecei a descer em direção ao chão. As pessoas que estavam comigo me retiraram do local e me estenderam sobre uma das pedras encravadas no belo cenário do Teatro de Nova Jerusalém.  Comecei a recobrar a consciência. Essas duas passagens aconteceram há muito tempo.

Dias de hoje. O ano, agora, é de 2011. Você já percebeu como quase todos os políticos, especialmente aqueles em cargos executivos, se acham o John Kennedy? Apesar de uma imensa semelhança, nenhum deles se vê como Odorico Paraguaçu, a criação tão real de Dias Gomes. Independentemente da cidade, estado ou país que governem, eles sempre se acham os maiores estadistas do mundo. E foi assim que, estando eu, por dever de ofício, no Galo da Madrugada, vejo irromper, em um dos camarotes, um baixinho caricatural. Ele andava apressado mas, com as perninhas pequenas, não percorria longa distância à medida que se movia. Cabelinho escorrido, repartido ao meio, óculos na ponta do nariz, uma figura cômica! Quase um hobbit, saído diretamente das páginas de J.R.Tolkien. Imaginei, em minha viagem alucinante, que ele estivesse muito aborrecido, já que, nessa época do ano, por tradição, a chave da cidade é entregue ao Rei Momo. O que me apavorou, no entanto, não foi o baixinho caricatural. O que me apavorou, de verdade, foram os “Aspone” que o seguiam. Para quem não sabe, a tradução de “Aspone” é Assessor de Porra Nenhuma. Eles seguiam o baixinho, todos de cara amarrada, exatamente como o chefe. Veio o trauma de infância, achei que era a parada de 7 de setembro em pleno Galo da Madrugada. Uma imagem surrealista. Comecei a contar Aspone por Aspone: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... O baixinho já estava lá no meio do camarote e ainda tinha Aspone passando pela entrada. 12, 13, 14, 15, 16... A tropa se movia sem dar um sorriso, passos determinados, quase uma marcha. 19, 20, 21, 22...Ai, ai, ai, é a porra da parada mesmo! Três fotógrafos seguravam suas câmeras como se fossem metralhadoras. É a porra da parada! Agora, eu tinha certeza. É a porra da parada, mesmo!!! Comecei a suar frio. Vai começar tudo de novo. Já sinto a dormência no corpo. O dia começa a escurecer sob os meus olhos. Nessa hora, Juliana – a minha produtora, sempre ela – percebendo que estou perdendo a cor, grita o meu nome bem na minha cara. Autoritária, me manda respirar, me dá um copo d’água gelada e me ordena que eu sente. Pergunto pra Juliana, desesperado:

- E a parada, Juliana? Cadê a parada?!

E Juliana, sem entender absolutamente nada, responde daquela forma delicada, tão característica dela.

- Que parada, Ivanildo?! Enlouqueceu?!!! Fumou?!!! Bebeu?!!! Cheirou?!!! Eu não sei de parada nenhuma!

Só para constar, eu não fumo, não bebo, nem cheiro. Para decepção de muita gente que me conhece, sou totalmente careta. Depois dos esporros de Juliana, resigno-me a obedecer às suas ordens e fico tentando percorrer os recantos do meu cérebro para saber se tudo aquilo não havia passado de alucinação ou se, de fato, tinha mesmo acontecido. A resposta à minha dúvida não demora. Depois de alguns minutos sentado, vejo o “John Kennedy Paraguaçu” saindo do camarote, seguido da tropa, seus mais de 25 “Aspone”. Indo embora. Tinha mesmo acontecido. Aliviado por eles estarem partindo, me dirijo à parada imaginária apenas em pensamento:

- Adeus! Adeus! Adeus!

Que pavor eu tenho de multidão. 

quinta-feira, 3 de março de 2011

Apenas uma Fatalidade


Em algum momento das nossas vidas, já nos deparamos com algumas coisinhas muito irritantes. Essas pequenas coisinhas irritantes são, normalmente, crianças que têm os pais totalmente sob o seu controle. Isso... São as crianças que mandam nos pais e não, como manda o bom senso, exatamente o contrário. Elas exercem um tipo de ditadura do terror sobre os seus genitores que me deixa perplexo.

Se eu tenho certeza que você já passou por essa situação uma ou duas vezes, é de impressionar como eu atraio essas criancinhas.

Um desses acontecimentos foi numa loja de presentes em que eu já estava no caixa, pagando ao próprio dono. Chega a mulher desse senhor, com uma criança aos berros... E, por favor, entenda quando eu falo “aos berros”. Ela gritava muito, muito alto. O que ela gritava era um verbo no presente do indicativo, 1ª pessoa do singular, acompanhado do pronome pessoal, com ênfase na primeira sílaba do verbo, estendendo essa sílaba por, pelo menos, três longos  segundos, o que, traduzido graficamente, é exatamente assim:

Eu queeeeeeeeeeeeroooo!

A afirmação era seguida por um choro histérico que durava mais 4 ou 5 segundos. Então, a sequência completa acontecia deste jeito:

Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááááááá!

A mãe explica para o pai do menino, com uma cara apalermada (nesse caso, a cara apalermada pertence aos dois), que ela e a criança tinham passado por uma loja de brinquedos e que o menino tinha visto - veja bem você – um navio na vitrine. E o menino não parava:

Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááááááá!

Esperando que o pai passasse o meu cartão, tive que assistir àquela cena deprimente. Foi então que me inspirei na série Guerra nas Estrelas, assumi o olhar de Darth Vader e encarei o menino bem no fundo dos seus olhos. Assim que o seu olhar cruzou com o meu, ele cortou a trilha irritante do choro. Olhou assustado para mim. Calou-se. Infelizmente, por alguns poucos segundos. Apenas por poucos segundos. Voltou o olhar para mãe e recomeçou:

Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááá! Eu queeeeeeeeeeeeroooo! Buáááááááááááááááááááááá!

Vi que Darth Vader funcionou, mas que eu não tinha a força mental para fazer o peste do menino calar a boca por mais tempo. Acho que, nessas horas, não existe força mental que dê jeito. Talvez, pais que não sejam apalermados ou, quem sabe, um acidente. E foi aí, então, que me lembrei de um outro acontecido com uma criança do mesmo grupo.  Refiro-me a “Grupo de Comportamento” que pode ser chamado, também, de “Transtorno de Alguma Coisa”.

Estava em um voo de Recife para o Rio. E, quando viajo de avião, penso logo em tirar o atraso do sono que me acompanha sempre. Durmo como se tivesse tomado calmante. Só que nesse voo havia uma criança do grupo a que me referi. Tão logo o comandante desligou a luz de atar cintos, os pais soltaram a sua ferinha em pleno corredor do avião. Confesso que nunca torci tanto para uma turbulência daquelas, bem assustadora.


O menino começou a correr pouco antes de chegarmos a Alagoas. Ele ia da primeira à última fileira e voltava. E, naturalmente, passava esbarrando nas pessoas que, como eu, ocupavam a poltrona do corredor.

Entramos na Bahia e o danado do menino correndo. Vai ter resistência assim no inferno! Eu sem conseguir pregar um olho. Lá vinha ele e tome a esbarrar nos passageiros. Não me contive mais. Fui até a chefe de cabine e perguntei:

Se eu não posso passar pela segurança com uma inofensiva garrafa de água mineral, como é que deixam alguém entrar com aquilo no avião?

E, constrangida, a chefe de cabine me diz que já falou com os pais, mas que, infelizmente, eles não tomaram nenhuma atitude. Aí, eu me referi à segurança de voo, que o próprio menino podia cair e se ferir, que podíamos atravessar uma turbulência rápida, que a norma é viajar com o cinto afivelado, mas a tripulação se mostrou impotente. Nesse ponto, já estávamos percorrendo ora o estado do Espírito Santo, ora o de Minas Gerais. Voltei para a minha poltrona, e foi então que a sabedoria da fatalidade pôde ser apreciada em toda sua beleza. Fatalidade é quando uma série de microssituações acontecem levando a um desfecho trágico para alguns, aliviador para outros. Quem já assistiu a um filme chamado “Premonição”? Não é de bom gosto, mas ajuda a entender a situação.



Na hora em que sentei de volta em meu lugar, o meu celular caiu embaixo da poltrona do meio. Automaticamente, comecei a me baixar para apanhá-lo. A partir daí, senti os momentos seguintes em ultra-hiper-super-câmera-lenta. À medida que eu fui me baixando, a minha perna esquerda foi entrando no corredor...  Eu estava na poltrona 7D (vejam no mapa de assentos). O menino vinha correndo do fundo da aeronave. Agora eu conseguia ouvir os passos do menino e era como se houvesse um intervalo de 5 segundos entre um passo e outro, a batida do seu pé no piso da aeronave produzia um som que também se estendia indefinidamente – a câmera lenta. No momento em que eu involuntariamente estendi a minha perna para o corredor, na tentativa de alcançar o meu celular, o menino estava voltando nas imediações da fileira 8. Percebi que ele estava ali pertinho, mas, infelizmente, não tive tempo de recolher a minha perna – a câmera lenta outra vez. O menino tropeça na minha panturrilha e voa, pousando como uma pedra na altura da fila 4. Ele levanta, completamente desconfiado, consciente – sim, eles têm consciência – de que havia recebido o castigo natural da fatalidade. Só então, já perto de entrarmos no estado do Rio de Janeiro, ele volta para a sua poltrona, e fica sentado junto aos pais, imóvel, durante todo o tempo restante de voo.

Quando, aliviado pelo pobre menino não ter sofrido nada, e sossegado por ele não estar mais correndo, me preparo para um pequeno cochilo no tempinho que me sobrara. Foi quando a chefe de cabine chega junto à minha poltrona e me dá, de presente, uma caixa de chocolates suíços que ela havia trazido de uma de suas escalas.

Muito obrigada, senhor. Foi maravilhoso o que o senhor fez por todos nós.

Aquela aeromoça realmente achava que eu tinha colocado a minha perna de propósito para o menino cair. Que coisa terrível... Como ela podia pensar aquilo de mim? Logo eu que adoro criança... Tentei, por todos os meios, dizer que não havia feito nada. Mas ela não aceitou os meus argumentos para recusar a caixa de chocolates. Olhei para trás e todos os passageiros, especialmente os que estavam nas poltronas do corredor, me lançaram um olhar de sorriso agradecido. Involuntariamente, fiz o que todos queriam ter feito. Como explicar para eles que tudo aquilo havia sido apenas fatalidade? Apenas uma fatalidade.