Estávamos saindo da era da porrada, do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, para entrar na distensão, lenta e gradual, do general-presidente Ernesto Geisel. E bote lenta nisso. O operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog foram duas das mortes que vieram a público nessa época. Lembro que a foto de Geisel nas capas de revista me assustava.
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Médici e Geisel. Só de olhar, dava medo. |
Mas eu - ainda bem - nunca cheguei a sofrer nada. Nem um arranhãozinho. O mais próximo que o regime militar chegou de mim foi quando minha irmã mais velha teve que se esconder numa cidadezinha, perto de Garanhuns, chamada Jupi. Toda sexta-feira à noite, eu e meus pais íamos vê-la. Primeiro, saíamos rodando feito peru bêbado, em véspera de Natal*, pelas ruas do Recife, para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Só depois de muito rodar, pegávamos a BR-232, que ainda não era duplicada, em direção a Jupi. Para mim, esse era o momento de maior emoção. Eu tinha apenas 15 anos, mas, como meu pai chegava morto de cansado do trabalho na sexta-feira, a responsabilidade de dirigir o carro na estrada era minha. Eu me sentia O Subversivo. Agora, imagina se tem uma blitz no caminho...
- Habilitação e documento do veículo.
- Tenho, não, seu guarda. O problema é que eu sou de menor e, como meu pai tá muito cansado pra dirigir, sobrou pra mim. A gente tá indo ali, pertinho, ver minha irmã subversiva que tá escondida em Jupi.
Já pensou na merda? Felizmente, essa blitz nunca aconteceu.
Olhava constantemente pelo retrovisor para ter a certeza de que não estávamos sendo seguidos. Mantinha-me atento, tensão proposital. Sentia como se eu fosse o artista de um filme de suspense. E, de fato, havia razões para essa neura. Um dos amigos de minha irmã, companheiro de lutas estudantis, foi preso e torturado. Conseguiu sair, mas ficou completamente abestalhado. Eu fiquei impressionado com a cara dele e, mais tarde, lendo o livro Brasil Nunca Mais, com o relato de torturas dos presos políticos, consegui entender a dor lancinante que ele teve de suportar. O coitado tinha toda razão de ficar abilolado.
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Brasil Nunca Mais: relato de presos políticos que sofreram tortura no regime militar. |
Ainda bem que eu não tinha idade para fazer parte da “luta”. Pra você ter uma ideia de como sou frouxo, eu urro de dor quando minha mulher resolve cortar as unhas do meu pé. Assim, tente imaginar o torturador querendo arrancá-las a seco como se conta nos relatos daquela época. Se eu fosse preso, bastaria me ameaçar com um choquinho que eu entregaria o aparelho inteiro, a célula inteira, todos os meus companheiros. No ato! Muito bonito lutar pela causa, mas eu seria um péssimo subversivo. Negócio mais sem graça ficar levando porrada e choque nos ovos.
A verdade, no entanto, é que eu e meus amigos herdamos, da geração imediatamente anterior a nossa, a possibilidade de nos mostrarmos contra o regime militar, sem correr mais tanto perigo de ser preso e torturado. A gente podia ir para os bares de Olinda e ficar cantando “Caminhando e cantando e seguindo a canção...”, “Apesar de Você”, “Cálice” e não sofrer nada. Fazíamos o maior sucesso. Era o máximo da subversão a que nos permitíamos. Eu e meu amigo, Marconi Meira, hoje respeitado cirurgião, éramos figurinhas carimbadas nos bares de Olinda. Chegávamos de violão em punho, começávamos a cantar e logo se formava uma roda em torno da gente. Passávamos aquela imagem de subversivo. Cabelão, barbão, chinelão, mas a verdade nua e crua é que éramos boyzinhos, filhinhos de papai tirando onda de revolucionários. Se alguém ameaçasse dar um choque, a gente entregava até Geraldo Vandré e a mãe dele. Eita que eu era um subversivo bundão! Ainda bem que a redemocratização do país já estava acontecendo.
Muitos anos depois, analisando friamente, será que todas aquelas mortes valeram a pena? Será que, de algum lugar no firmamento, não tem um subversivo morto pensando:
- Caramba, apanhei pra cacete, levei choque, pau-de-arara, dedo no... (não importa) e essa porra não entrou nos eixos?
O Brasil é um país muito doido. A gente ama e odeia, ao mesmo tempo, o tempo todo. Um potencial imenso, mas com muitas deformidades de caráter. A História explica tudo. Laurentino Gomes, no seu livro 1822, relata que Dom Pedro I comprava cavalos comuns, verdadeiros pangarés, e cravava neles a marca da Fazenda Real para vendê-los por valores muito maiores. Se o próprio Imperador fazia isso...
*No passado, quando ainda não havia peru de Natal com termômetro pra avisar que estava pronto, dava-se cachaça ao peru antes de trucidá-lo. Que coisa primitiva.
Impressionantemente, no texto desta semana não tem ficção. Tudo aconteceu de verdade.
Impressionantemente, no texto desta semana não tem ficção. Tudo aconteceu de verdade.