Eu havia escolhido um lugar à mesa que me desse amplitude de visão
sobre todo o local. E foi assim que eu vi aquele senhor entrar no restaurante
e, sorrindo, apontar em minha direção. Não, eu não o conhecia. Pelo menos, essa
foi a minha primeira impressão. Retribuí o seu sorriso, sem me importar se
estaria retribuindo ou se ele havia dirigido o olhar, de fato, para outra
pessoa e não para mim. Eu sou mestre em retribuir sorrisos e acenos não
dirigidos a mim. Todo mundo já pagou o mico de retribuir um aceno ou um sorriso
que não era para si. Eu sou campeão nessa modalidade. Com a minha péssima
memória, fico aflito de não estar retribuindo a atitude de uma pessoa que me
seja muito próxima, quer por amizade ou da minha atividade profissional. Quem
não me conhece de perto já me salpicou a pecha de ser metido, imagine se eu não
retribuir a um cumprimento. Então, para evitar aumentar essa fama indesejada,
vivo pagando o mico de retribuir acenos e sorrisos que não são para mim. Acho
que só perco para político que, por dever de profissão – e cara de pau, mesmo –
sai dando a mão pra todo mundo e distribuindo sorrisos como se fossem notas de
dinheiro em dia de eleição.
Marconi já havia chegado. E aquele senhor que mandou um aceno para
mim chegou à nossa mesa. E veio sorrindo e me dando os parabéns pelo
aniversário. Oxe! Não tive dúvida, ri e o abracei como se o conhecesse desde
sempre. Cumprimentei a esposa dele. E Marconi, sem imaginar que eu não tinha a
menor ideia de quem se tratava, levava a situação adiante como a coisa mais
normal do mundo. Finalmente, o senhor falou. Eu definitivamente conhecia aquela
voz. Exatamente! Demorei alguns segundos para fazer todas as sinapses, tomar um
bonde no túnel do tempo e, finalmente, reconhecer que aquele sorriso e aceno se
tratavam de Sérgio Lyra Aguiar. Aquele senhor. Quando foi exatamente que nos
transformamos em senhores?
Fazia uma vida e meia que eu não via Sérgio. Ele tinha se mudado
para a terra de trump quando trump era ainda, apenas, um filhinho de papai rico.
Sérgio era meu parceiro de aventuras com as letras. Fomos os editores de um
jornal alternativo durante o nosso Ensino Médio, que nesse tempo era chamado de
Segundo Grau... Que nada, era ainda mais antigo. O Ensino Médio, na minha
época, era chamado de Científico. Como achávamos o folhetim do Colégio Esuda um
“chapa-branca”, resolvemos fazer o nosso próprio jornal. Jornal com J
maiúsculo. Foi um parto negociar com o diretor-Pedrão a exposição do jornal.
Isso mesmo, exposição. Imprimir um jornal alternativo ao “chapa-branca” estava
vetado pelo diretor-Pedrão. O jornal tinha que ser mural. Sabe aquela coisa que
fica dentro de um quadro de aviso com uma dificuldade monstra para ser lido?
Pois era o nosso jornal, que tinha o sugestivo nome de DIÁLOGO, assim mesmo,
tudo em caixa alta. Cada edição do DIÁLOGO era um parto de trigêmeos. Pedrão
riscava todos os nossos textos. Eu e Sérgio ficávamos horas no gabinete do
diretor-Pedrão tentando salvar a linha mestra da nossa experiência
jornalística. É verdade que a gente não perdoava. Estávamos no extremo do nosso
radicalismo dos 16 anos. Pedrão explodiu em fúria, numa das edições, batendo na
mesa, quase quebrando o vidro, quando escrevemos um artigo com o título de “DECAPITADAS”.
Ele gritava, urrava, em tom de espanto questionador: “Decapitadas??!!! DECAPITADAS??!!!
As árvores foram POOOODADAS!!!!” Pedrão tinha mais ou menos uns 170kg, distribuídos
aleatoriamente pelo seu 1,95m de altura. Entenda esse aleatoriamente como
quiser. Assustador. Mas a verdade, para a nossa vaidade, é que o jornal da
gente fazia o maior sucesso. No dia do lançamento havíamos feito uma postagem
que na época era buchicho, espalhando que vinha bomba! Foi um tumulto, todo
mundo querendo ler! A gente, olhando de longe, orgulhoso do nosso filho(s).
Voltando ao restaurante, pouco depois, chegou Potó, apelido que
Alexandre Rossi conquistou por sua impertinência contra um colega de sala. O
cara não aguentava mais a “encheção” de saco de Alexandre e gritou com todos os
pulmões – e mais um emprestado do amigo CDF do lado – POTÓÓÓÓ, desgraçado!!!!
Pronto, ficou para sempre. Olhando Alexandre do outro lado da mesa, eu tive a
noção exata de como o tempo havia passado. Não havia um único cabelo preto.
Todos brilhantemente brancos, resultado do tempo, de aperreio ... Como todos
nós. Muitas vezes, a vida é aperreio, não é? E parece que todo mundo tem. A
gente não se dá conta de como o tempo passou até olhar para alguém que a gente
não vê todos os dias e faz a autorreflexão: “como envelhecemos!” Ou não faz a reflexão
e pensa: como ele está acabado. Ah, a ausência do espelho, nesse minuto exato, faz
com que a realidade seja turva para os olhos. Envelhecemos todos. Mas não é de
todo ruim. Dizem que única vantagem da idade é a experiência, mas não vale
muito porque não a tivemos quando jovens. Ainda bem que não a tivemos. A vida
teria sido chata se a tivéssemos vivido com a experiência que temos hoje.
Talvez eu não tivesse pulado de paraquedas com o avião em pane, ou não tivesse
sofrido o acidente de moto, ou não tivesse escorregado pelo asfalto entrando
embaixo daquele caminhão... Meu anjo da guarda ganhou hora extra no relógio de ponto
do céu. Fez um esforço imenso para me manter aqui na terra.
Os meus cabelos e os de Marconi, longos, batendo nos ombros, ficaram lá em 1975. Podíamos ter vivido mais próximos, eu e esse irmão. Quando chego lá no Memorial, me apresento como irmão bastardo dele, e digo que sou resultado de um caso extraconjugal de seu Inácio, pai de Marconi. Se seu Inácio descobre que eu tiro essa onda, não tem anjo da guarda que me salve. Pense num “homi brabo”! Tocamos muito violão e cantamos juntos muitas canções inesquecíveis. “Blowing in the Wind”, de Bob Dylan, era a única música que eu sabia tocar na gaita e a única que ele sabia tocar no violão. Um sucesso nas mesas dos bares de Olinda que era onde a nossa alma se regozijava, entre goles de cerveja e pedaços de agulha frita. O tempo foi bom com a gente. Desde a adolescência. Fizemos muita farra, ficamos estressados pra passar no Vestibular, construímos nossas famílias, estamos quase completando o relógio do download. Mas isso, a gente nunca sabe quando conclui. Ninguém, não é mesmo?
Os meus cabelos e os de Marconi, longos, batendo nos ombros, ficaram lá em 1975. Podíamos ter vivido mais próximos, eu e esse irmão. Quando chego lá no Memorial, me apresento como irmão bastardo dele, e digo que sou resultado de um caso extraconjugal de seu Inácio, pai de Marconi. Se seu Inácio descobre que eu tiro essa onda, não tem anjo da guarda que me salve. Pense num “homi brabo”! Tocamos muito violão e cantamos juntos muitas canções inesquecíveis. “Blowing in the Wind”, de Bob Dylan, era a única música que eu sabia tocar na gaita e a única que ele sabia tocar no violão. Um sucesso nas mesas dos bares de Olinda que era onde a nossa alma se regozijava, entre goles de cerveja e pedaços de agulha frita. O tempo foi bom com a gente. Desde a adolescência. Fizemos muita farra, ficamos estressados pra passar no Vestibular, construímos nossas famílias, estamos quase completando o relógio do download. Mas isso, a gente nunca sabe quando conclui. Ninguém, não é mesmo?
Aqui, do meu ponto de vista central, vejo a todos num delicioso
semicírculo. É bom olhar pra trás e ver que continuamos na estrada, agora, mais
perto do meu meio-irmão (já que eu sou bastardo). A vida nos colocou de volta
no caminho um do outro. E não poderia haver nada de melhor. Não é que tenhamos
nos separado, mas a vida aprontou, lá atrás, uma ou outra peça para nos deixar
sem fazer parte inteira (se é que isso existe) da vida do outro. Mas no fim,
como a vida também é sábia, nos trouxe de volta à mesma estrada. Quem sabe um
dia, pegamos uma mesa e cantamos junto “Sinal Fechado”, “olá, como vai”, “eu
vou indo e você, tudo bem?” ou arrasta uma “Orora”, com os breques todos
sincronizados. O violão ainda toca o coração. Não sei é se eu tenho dedo e mão!
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